Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|Humor e veneno em 'A Grande Dama do Cinema'

Novo filme de Juan José Campanella arma o jogo entre velhos ídolos decaídos e jovens negociantes da atualidade

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Graciela Borges como a diva Mara Ordaz em A Grande Dama do Cinema Foto: Estadão

 

A Grande Dama do Cinema foi o título em português encontrado para El Cuento de las Comadrejas, de Juan José Campanella, autor de O Segredo dos seus Olhos, vencedor do Oscar.

PUBLICIDADE

Campanella, que faz cinemão inteligente, novamente acerta neste filme que é remake de Los Muchachos de Antes no Usaban Arsénico, de José Martínez Suárez, de 1976. Há mesmo um clima retrô que atravessa a obra. Mesmo sem conhecer esta obra argentina dos anos 1970, os cinéfilos vão de cara reconhecer as alusões bastante diretas ao clássico Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder. Mas há também algo (e não pouco) de Sleuth, conhecido como Jogo Mortal, de Joseph Mankiewicz.

Assim, se em Crepúsculo dos Deuses o que temos é uma grande atriz do passado que vive isolada e entre suas lembranças (Norma Desmond, por Gloria Swanson), em A Grande Dama do Cinema quem vemos é outra atriz imaginária, Mara Ordaz (Graciela Borges), que mora em seu casarão na periferia de Buenos Aires em companhia do marido e também ex-ator Pedro (Luis Brandoni), o diretor Norberto (Oscar Martínez) e o roteirista Martín (Marcos Mundstock). Quatro idosos que vivem de lembranças do passado e passam seus dias em atividades diversas, entre as quais o cultivo da ranzinzice e a arte de pegar no pé uns dos outros.

De Jogo Mortal, Campanella importa o sempre atual conflito entre gerações. Em Mankiewicz tínhamos a gincana de maldades entre um jovem Michael Caine e um veterano astuto interpretado por Laurence Olivier. Em A Dama do Cinema, o tal (des)encontro entre gerações surge quando um casal jovem aparece na casa a pretexto de dar um telefonema (estão perdidos, o celular não tem sinal). Reconhecem a dona da casa e dizem-se fãs de carteirinha dos seus filmes. Também celebram os outros artistas aposentados. Têm, é claro, outra coisa em mente e jogam com a mais vertiginosa das fraquezas humanas - a vaidade.

O espectador atento não deixará de perceber logo de cara que está diante de uma jogo de manipulações com um objetivo imobiliário bem concreto. Não deixará também de notar que ambos os lados têm seus trunfos. A impulsividade, o engenho e a ambição da juventude contra a força da experiência que só vem com a idade. Quem triunfará? E como?

Publicidade

Estão aí os parâmetros bem ajustados para uma peça de disputa refinada e cheia de reviravoltas. Que, também, jamais recusa seu tom de farsa e pastiche em nome de alguma suposta seriedade. O humor negro corre solto desde o início e, à medida em que se aproxima o desfecho, libera-se de vez. Até despencar no grand guignol que agrada a uns e nem tanto a outros.

Mais uma vez o cinema argentino de público se apoia em dois dos seus maiores trunfos - a bela construção do roteiro e a excelência do seu elenco.

Falando deste último item, podemos começar por essa atriz notável que é Graciela Borges, capaz de emprestar tanto humor quando tragicidade a essa personagem patética que é Mara Ordaz. Ao seu redor, as três figuras masculinas parecem coadjuvantes. Mas que coadjuvantes, cada qual capaz de solos marcantes ao longo da narrativa! Marcos Mundstock, Luis Brandoni e Oscar Martínez brilham em seus papéis, tanto maléficos quanto cheios de uma antiga e talvez bolorenta humanidade.

Os dois jovens escolhidos, Clara Lago como a melíflua Bárbara, e Nicolás Francella como o envolvente Francisco, parecem à vontade ao contracenar com veteranos tão ilustres.

Quanto ao roteiro, Campanella usa as técnicas de reviravoltas da escrita clássica para o cinema de público, mas não se recusa a adicionar-lhe um tom negro e profundo em algumas passagens. Afinal, a história, que se deseja em primeiro lugar apenas um bom passatempo, fala do processo do envelhecimento, da nostalgia de glórias passadas, da ambição sem limites dos nossos dias, aliado a um vale-tudo que baniu de vez a ética dos negócios. É a nossa sociedade que se encontra em pauta, confrontada com valores de outros tempos.

Publicidade

A Grande Dama do Cinema fala também da violência que se paga com violência e o filme não parece em momento algum preocupado com pruridos da falsa moralidade que vige hoje em dia. Guerra é guerra, parece dizer.

Leia a série completa de  A arte da crítica

Ou na página do Facebook: A arte da crítica

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.