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Cinema, cultura & afins

Opinião|Heleno, o mais romântico e trágico dos craques

 

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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 Foto: Estadão

 

Quem acompanha as trajetórias de Edmundo, Adriano, Ronaldinho e outros jogadores problemáticos talvez não saiba que todos eles têm um antecessor famoso. Heleno de Freitas, craque do Botafogo na era pré-Garrincha era tão caprichoso que a torcida adversária o apelidou de Gilda, filme estrelado por Rita Hayworth no papel da mulher tão bela quanto encrencada.

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Heleno também era boa pinta e entrava em campo com os cabelos assentados por gomalina. Usava ternos da moda, era galã, mulherengo, boêmio, e gostava da noite de Copacabana. A família viera de Minas, da pequena São João Nepomuceno, onde nosso personagem nasceu, em 1920. Filho de um comerciante de café, que um dia morreu de pneumonia, Heleno mudou-se com a família para o Rio quando era ainda um garoto de 13 anos. Logo descobriu o futebol de praia em Copacabana e atuou sob direção do folclórico Neném Prancha, filósofo do esporte e autor de algumas das mais famosas frases sobre o jogo da bola. Nas imediações do Posto 6, conheceu e se tornou amigo de outro botafoguense, João Saldanha.

Em tal companhia, Heleno só poderia terminar em General Severiano, onde chegou depois de breve desvio pelo Fluminense, clube para o qual o haviam levado alguns amigos. Aliás, uma das curiosidades da vida de Heleno é que, durante algum tempo, ele pôde jogar pelas duas equipes ao mesmo tempo. É que nos anos 1930 havia uma cisão no futebol carioca entre os que aceitavam o profissionalismo e os que o rechaçavam. Formaram-se duas ligas rivais. Entre as duas facções, Heleno jogava ora por um time ora por outro. Mas o duplo vínculo logo cessou e ele pôde se dedicar, de maneira exclusiva, ao seu time do coração, o da estrela solitária.

Houve uma mudança importante também nesse início de trajetória de Heleno. No princípio, ele jogava no meio de campo, onde se destacava pela classe e elegância. Mas tinha outra característica que poderia ser aproveitada: rendia melhor mais adiantado, dentro da área, onde imperavam seu furor, a vontade sem tamanho de vencer, a valentia e a volúpia do gol. Transformado em centroavante, encontrou seu verdadeiro lugar dentro de campo. E também no coração da torcida que, no entanto, como se sabe, é volúvel como o de uma prima-dona.

Heleno era famoso por jogar como se tomado pela dramaticidade de uma ópera, embriagado pelo desejo de vitória, incapaz de pensar em outra coisa senão em derrotar o adversário. Desse modo, brilhou intensamente no auge de sua carreira, entre 1940 e 1947. Nesse período áureo disputou a maior parte dos seus 304 jogos como profissional e marcou a maioria dos seus 249 gols. No entanto, por ironia, nunca conseguiu dar um título ao seu querido Botafogo.

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Na gestão de Carlito Rocha (e do seu cão Biriba) foi vendido para o Boca Juniors, e lá ficou por pouco tempo. Desentendimentos com colegas, brigas, noitadas, Heleno era sempre o mesmo. Queixava-se de boicote dos argentinos, de que a bola nunca chegava a ele, em especial do jeito que a exigia, mansinha em seus pés. Encerrou prematuramente a experiência portenha e voltou ao Brasil. Foi para o Vasco e, também por ironia, conquistou seu único título carioca por um clube rival do seu amado Botafogo.

Já não era o mesmo e os sintomas da sífilis começavam a aparecer. Em 1950, largou o Vasco e foi atrás dos dólares da famosa Liga Pirata colombiana, contratado pelo Atlético Junior de Barranquilla. Chegou encrencando com os novos patrões porque achou que o hotel onde o hospedaram não estava à altura. Mudaram-no para outro, mais condizente com o personagem. Com toda essa pompa inicial, a passagem por Barranquilla pouco teve de notável. Exceto pelo fato de Heleno tornar-se personagem de um jornalista chamado Gabriel García Márquez. Está certo que naquela época García Márquez sequer sonhara com Cem Anos de Solidão, ainda não se tornara um Pelé das letras e teria achado graça caso lhe dissessem que um dia ganharia o Nobel de Literatura. No entanto, era já cronista de pena cheia e brindou Heleno com o texto intitulado O Doutor De Freitas. Nele, fala de uma "milagrosa atuação"do brasileiro no Estádio Municipal.

Nelson Rodrigues também se refere ao período colombiano de Heleno. Evocando cenas fantasiosas, disputas cavalheirescas e aventuras amorosas do jogador, Nelson conclui: "Não há no futebol brasileiro jogador mais romanesco".

Tanto romance cobrava seu preço. Heleno ficou seis meses na Colômbia e voltou disposto a retomar a carreira. Não conseguiu. Em rápida passagem pelo Santos, brigou com todo mundo e voltou ao Rio. Lá vestiu sua última camisa profissional, a do América, com a qual realizou o desejo de jogar no Maracanã, onde sonhara defender o Brasil na Copa do Mundo. Sonho impossível, porque estava brigado com o técnico da seleção, Flávio Costa. E também porque em 1950 não era sombra do jogador que fora. Mesmo esse jogo no Maracanã tornou-se pesadelo. Com a camisa do América, comportou-se de maneira tão desvairada que terminou expulso. Era o fim.

O grande Heleno, o Gilda dos gramados, já não tinha condições sequer de cuidar de si. Assistido pelo irmão Oscar, começou a peregrinação por sanatórios, para tentar se curar. Em vão. A sífilis, provavelmente apanhada nos bordéis da vida, havia tomado seu cérebro e não era mais controlável. Terminou em Barbacena, a cidade mineira dos asilos de loucos, onde ainda viveu por seis anos, cada vez pior, em meio a recortes de jornais que falavam do seu tempo de fama. Morreu, em 1959. Tinha 39 anos.

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(Caderno de Esportes)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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