Cinema, cultura & afins

Opinião|Gramado 2020: 'Aos pedaços', o cinema insolente de Ruy Guerra


Por Luiz Zanin Oricchio

Aos 89 anos, Ruy Guerra continua a ser o cineasta mais jovem em atividade no Brasil. A prova é este Aos Pedaços, seu novo longa-metragem e obra mais experimental de todo o lineup do Festival de Gramado. 

De maneira inventiva, Ruy investiga o tema do Outro (ou da Outra) através de quatro personagens. Um bígamo, Eurico  Cruz (Emílio de Mello), casado com duas mulheres chamadas Ana e Anna (Simone Spoladore e Christiana Ubach), e mais um tipo (Julio Adrião) que pode ser o demônio ou simplesmente um pastor evangélico disposto a atormentar a todos em nome da palavra revelada. 

O predomínio é do espaço fechado, embora as mulheres pareçam estar ora numa praia ora nas areias de um deserto. O tormento de Eurico é desencadeado uma carta o avisando de que está prestes a ser assassinado. 

continua após a publicidade

O filme é um quebra-cabeças, que pode ser fascinante para uns e tedioso para outros. Não há uma "história" ser acompanhada, mesmo porque não se sabe se as coisas se passam na "realidade"ou apenas na cabeça do homem ameaçado. Para quem é cinéfilo, pode ser um prato feito decodificar referências, de Orson Welles ao Bergman de Persona, passando por Robbe-Grillet ou mesmo David Lynch. Os nexos lógicos se rompem e assistir Aos Pedaços pode ser uma experiência de abismo. Mesmo porque o próprio título indica nos coloca diante de fragmentos e não de alguma totalidade. Isso não quer dizer que não tenha significado. Apenas, que estes significados podem ser múltiplos e mesmo contraditórios entre si. Talvez, mais que uma obra sobre o espaço, seja um experimento sobre o tempo, algo do tipo de O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais.  Enfim, é embarcar na experiência ou recusá-la. Dignos de nota o rigor da direção e a fotografia inspiradíssima de Pablo Baião. 

O outro concorrente brasileiro, Me Chama que eu Vou, de Joana Mariani, é mais um documentário musical, desta vez tendo como personagem o cantor e performer Sidney Magal. Bem, é uma figura polêmica, tido em sua época como brega, escandaloso e outros adjetivos. Fez enorme sucesso de público, encantou mulheres e enraiveceu homens. Vamos reencontrá-lo agora, na maturidade, aos 70 anos, como um senhor saudável, plácido e bem-humorado, na paz em sua casa em Salvador. 

Além da entrevista, o filme conta com material de pesquisa de várias fases da carreira do artista. Mas o melhor é mesmo o que revela de sua personalidade, para além dos estereótipos (alguns verdadeiros) usados para defini-lo. Alguém de bem com a vida que se diverte, pasme, cantando músicas de excelente qualidade acompanhado ao piano. Filão inesgotável, esse dos documentários sobre as figuras da música brasileira.  

continua após a publicidade

Estrangeiros

Matar a un Muerto (PAR), de Hugo Giménez, é o mais político dos concorrentes estrangeiros. Remete-se a 1978, época da ditadura de Alfredo Stroessner no Paraguai. Inimigos do regime são assassinados e os corpos desovados no campo, onde dois homens são encarregados de fazê-los desaparecer. Em meio a isso, rola a Copa do Mundo na Argentina e o problema da dupla é fazer funcionar um radinho de pilhas para poder acompanhar os jogos. A banalidade em meio ao mal, como assinalou o diretor, durante o debate, citando a expressão de Hannah Arendt a respeito dos carrascos nazistas. 

Acontece que um dia, entre os "pacotes" (corpos) entregues pelo exército, aparece um homem bastante ferido mas ainda vivo. O que fazer com ele?, é a pergunta ética a dividir os dois homens.

continua após a publicidade

 Bastante simples, e forte em sua simplicidade, Matar a un Muerto é profundo ao buscar a compaixão e o humanismo lá onde não parece ser possível encontrá-los. Um filme necessário neste momento em que a brutalidade política parece não mais chocar as pessoas e ressuscitar em vários cantos do mundo, mesmo aqui por perto. 

Los Fuertes (CHI), de Omar Zúñiga, é mais um aceno da curadoria à questão LGBT. O jovem Lucas (Samuel González) viaja para uma cidade litorânea no sul chileno para despedir-se de sua irmã. Está de viagem marcada para o Canadá, país onde ganhou uma bolsa de estudos. Mas no local conhece o contra-mestre de um barco de pesca, Antonio (Antonio Altamirano) e os dois se apaixonam. Um filme de fatura sólida, bem-feito em todos os aspectos, embora convencional, sobre a questão da liberdade de escolha de cada um ou uma - em especial no que diz respeito à própria sexualidade.  

Curtas 

continua após a publicidade

Dominique (RJ), de Tatiana Issa e Guto Barra. A personagem título é uma pessoa transgênero, que vai visitar a mãe em uma ilha no foz do Amazonas. Pouco discursivo, o curta acompanha Dominique em planos-sequência, como a revelar o olhar do outro sobre ela. É uma ótima personagem pela articulação e franqueza como aborda os problemas e os preconceitos enfrentados. A mãe também é presença forte. Além de Dominique tem mais duas filhas transsexuais e diz como teve de se reinventar para enfrentar preconceitos e manter o amor materno.  

Joãozinho da Goméia - o Rei do Candomblé (RJ), de Janaina Oliveira ReFem e Rodrigo Dutra, traz à cena o personagem importante na religiosidade de matriz africana, discriminado e perseguido em seu tempo. O mundo do candomblé, a negação brasileira das raízes africanas e a homofobia são apresentados num filme que usa a performance como forma de expressão e comentário da narração em off. 

Remoinho (PB), de Tiago A. Neves. A jovem Maria volta com seu filho para a casa da mãe (Zezita Matos), no sertão paraibano. Trabalho de poucas palavras, expressa o desejo de rompimento com um ciclo familiar que parece se eternizar na vida das mulheres. Muito bonito e singelo. 

continua após a publicidade

Você tem olhos Tristes (SP), de Diogo Leite, tem como personagem um bikeboy de aplicativo. Ou seja, o rapaz entrega comida, descolcando-se em sua bicicleta, e, como é negro e pobre, enfrenta preconceitos de classe e de raça. Um dos clientes é um velhote agressivo interpretado por Jean-Claude Bernardet, professor da USP, ensaísta brilhante e ator. Outra cliente é a mulher supostamente liberal vivida por Gilda Nomacce. As falas de Gilda são deliciosas, filtrando, pelos poros de um discurso em tese politicamente correto, todo tipo de preconceitos. Filme-denúncia, cuja proposta é a altivez do oprimido diante do opressor, foi, segundo o diretor, inspirado no livro A Ralé Brasileira, de Jessé Souza. 

 

Aos 89 anos, Ruy Guerra continua a ser o cineasta mais jovem em atividade no Brasil. A prova é este Aos Pedaços, seu novo longa-metragem e obra mais experimental de todo o lineup do Festival de Gramado. 

De maneira inventiva, Ruy investiga o tema do Outro (ou da Outra) através de quatro personagens. Um bígamo, Eurico  Cruz (Emílio de Mello), casado com duas mulheres chamadas Ana e Anna (Simone Spoladore e Christiana Ubach), e mais um tipo (Julio Adrião) que pode ser o demônio ou simplesmente um pastor evangélico disposto a atormentar a todos em nome da palavra revelada. 

O predomínio é do espaço fechado, embora as mulheres pareçam estar ora numa praia ora nas areias de um deserto. O tormento de Eurico é desencadeado uma carta o avisando de que está prestes a ser assassinado. 

O filme é um quebra-cabeças, que pode ser fascinante para uns e tedioso para outros. Não há uma "história" ser acompanhada, mesmo porque não se sabe se as coisas se passam na "realidade"ou apenas na cabeça do homem ameaçado. Para quem é cinéfilo, pode ser um prato feito decodificar referências, de Orson Welles ao Bergman de Persona, passando por Robbe-Grillet ou mesmo David Lynch. Os nexos lógicos se rompem e assistir Aos Pedaços pode ser uma experiência de abismo. Mesmo porque o próprio título indica nos coloca diante de fragmentos e não de alguma totalidade. Isso não quer dizer que não tenha significado. Apenas, que estes significados podem ser múltiplos e mesmo contraditórios entre si. Talvez, mais que uma obra sobre o espaço, seja um experimento sobre o tempo, algo do tipo de O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais.  Enfim, é embarcar na experiência ou recusá-la. Dignos de nota o rigor da direção e a fotografia inspiradíssima de Pablo Baião. 

O outro concorrente brasileiro, Me Chama que eu Vou, de Joana Mariani, é mais um documentário musical, desta vez tendo como personagem o cantor e performer Sidney Magal. Bem, é uma figura polêmica, tido em sua época como brega, escandaloso e outros adjetivos. Fez enorme sucesso de público, encantou mulheres e enraiveceu homens. Vamos reencontrá-lo agora, na maturidade, aos 70 anos, como um senhor saudável, plácido e bem-humorado, na paz em sua casa em Salvador. 

Além da entrevista, o filme conta com material de pesquisa de várias fases da carreira do artista. Mas o melhor é mesmo o que revela de sua personalidade, para além dos estereótipos (alguns verdadeiros) usados para defini-lo. Alguém de bem com a vida que se diverte, pasme, cantando músicas de excelente qualidade acompanhado ao piano. Filão inesgotável, esse dos documentários sobre as figuras da música brasileira.  

Estrangeiros

Matar a un Muerto (PAR), de Hugo Giménez, é o mais político dos concorrentes estrangeiros. Remete-se a 1978, época da ditadura de Alfredo Stroessner no Paraguai. Inimigos do regime são assassinados e os corpos desovados no campo, onde dois homens são encarregados de fazê-los desaparecer. Em meio a isso, rola a Copa do Mundo na Argentina e o problema da dupla é fazer funcionar um radinho de pilhas para poder acompanhar os jogos. A banalidade em meio ao mal, como assinalou o diretor, durante o debate, citando a expressão de Hannah Arendt a respeito dos carrascos nazistas. 

Acontece que um dia, entre os "pacotes" (corpos) entregues pelo exército, aparece um homem bastante ferido mas ainda vivo. O que fazer com ele?, é a pergunta ética a dividir os dois homens.

 Bastante simples, e forte em sua simplicidade, Matar a un Muerto é profundo ao buscar a compaixão e o humanismo lá onde não parece ser possível encontrá-los. Um filme necessário neste momento em que a brutalidade política parece não mais chocar as pessoas e ressuscitar em vários cantos do mundo, mesmo aqui por perto. 

Los Fuertes (CHI), de Omar Zúñiga, é mais um aceno da curadoria à questão LGBT. O jovem Lucas (Samuel González) viaja para uma cidade litorânea no sul chileno para despedir-se de sua irmã. Está de viagem marcada para o Canadá, país onde ganhou uma bolsa de estudos. Mas no local conhece o contra-mestre de um barco de pesca, Antonio (Antonio Altamirano) e os dois se apaixonam. Um filme de fatura sólida, bem-feito em todos os aspectos, embora convencional, sobre a questão da liberdade de escolha de cada um ou uma - em especial no que diz respeito à própria sexualidade.  

Curtas 

Dominique (RJ), de Tatiana Issa e Guto Barra. A personagem título é uma pessoa transgênero, que vai visitar a mãe em uma ilha no foz do Amazonas. Pouco discursivo, o curta acompanha Dominique em planos-sequência, como a revelar o olhar do outro sobre ela. É uma ótima personagem pela articulação e franqueza como aborda os problemas e os preconceitos enfrentados. A mãe também é presença forte. Além de Dominique tem mais duas filhas transsexuais e diz como teve de se reinventar para enfrentar preconceitos e manter o amor materno.  

Joãozinho da Goméia - o Rei do Candomblé (RJ), de Janaina Oliveira ReFem e Rodrigo Dutra, traz à cena o personagem importante na religiosidade de matriz africana, discriminado e perseguido em seu tempo. O mundo do candomblé, a negação brasileira das raízes africanas e a homofobia são apresentados num filme que usa a performance como forma de expressão e comentário da narração em off. 

Remoinho (PB), de Tiago A. Neves. A jovem Maria volta com seu filho para a casa da mãe (Zezita Matos), no sertão paraibano. Trabalho de poucas palavras, expressa o desejo de rompimento com um ciclo familiar que parece se eternizar na vida das mulheres. Muito bonito e singelo. 

Você tem olhos Tristes (SP), de Diogo Leite, tem como personagem um bikeboy de aplicativo. Ou seja, o rapaz entrega comida, descolcando-se em sua bicicleta, e, como é negro e pobre, enfrenta preconceitos de classe e de raça. Um dos clientes é um velhote agressivo interpretado por Jean-Claude Bernardet, professor da USP, ensaísta brilhante e ator. Outra cliente é a mulher supostamente liberal vivida por Gilda Nomacce. As falas de Gilda são deliciosas, filtrando, pelos poros de um discurso em tese politicamente correto, todo tipo de preconceitos. Filme-denúncia, cuja proposta é a altivez do oprimido diante do opressor, foi, segundo o diretor, inspirado no livro A Ralé Brasileira, de Jessé Souza. 

 

Aos 89 anos, Ruy Guerra continua a ser o cineasta mais jovem em atividade no Brasil. A prova é este Aos Pedaços, seu novo longa-metragem e obra mais experimental de todo o lineup do Festival de Gramado. 

De maneira inventiva, Ruy investiga o tema do Outro (ou da Outra) através de quatro personagens. Um bígamo, Eurico  Cruz (Emílio de Mello), casado com duas mulheres chamadas Ana e Anna (Simone Spoladore e Christiana Ubach), e mais um tipo (Julio Adrião) que pode ser o demônio ou simplesmente um pastor evangélico disposto a atormentar a todos em nome da palavra revelada. 

O predomínio é do espaço fechado, embora as mulheres pareçam estar ora numa praia ora nas areias de um deserto. O tormento de Eurico é desencadeado uma carta o avisando de que está prestes a ser assassinado. 

O filme é um quebra-cabeças, que pode ser fascinante para uns e tedioso para outros. Não há uma "história" ser acompanhada, mesmo porque não se sabe se as coisas se passam na "realidade"ou apenas na cabeça do homem ameaçado. Para quem é cinéfilo, pode ser um prato feito decodificar referências, de Orson Welles ao Bergman de Persona, passando por Robbe-Grillet ou mesmo David Lynch. Os nexos lógicos se rompem e assistir Aos Pedaços pode ser uma experiência de abismo. Mesmo porque o próprio título indica nos coloca diante de fragmentos e não de alguma totalidade. Isso não quer dizer que não tenha significado. Apenas, que estes significados podem ser múltiplos e mesmo contraditórios entre si. Talvez, mais que uma obra sobre o espaço, seja um experimento sobre o tempo, algo do tipo de O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais.  Enfim, é embarcar na experiência ou recusá-la. Dignos de nota o rigor da direção e a fotografia inspiradíssima de Pablo Baião. 

O outro concorrente brasileiro, Me Chama que eu Vou, de Joana Mariani, é mais um documentário musical, desta vez tendo como personagem o cantor e performer Sidney Magal. Bem, é uma figura polêmica, tido em sua época como brega, escandaloso e outros adjetivos. Fez enorme sucesso de público, encantou mulheres e enraiveceu homens. Vamos reencontrá-lo agora, na maturidade, aos 70 anos, como um senhor saudável, plácido e bem-humorado, na paz em sua casa em Salvador. 

Além da entrevista, o filme conta com material de pesquisa de várias fases da carreira do artista. Mas o melhor é mesmo o que revela de sua personalidade, para além dos estereótipos (alguns verdadeiros) usados para defini-lo. Alguém de bem com a vida que se diverte, pasme, cantando músicas de excelente qualidade acompanhado ao piano. Filão inesgotável, esse dos documentários sobre as figuras da música brasileira.  

Estrangeiros

Matar a un Muerto (PAR), de Hugo Giménez, é o mais político dos concorrentes estrangeiros. Remete-se a 1978, época da ditadura de Alfredo Stroessner no Paraguai. Inimigos do regime são assassinados e os corpos desovados no campo, onde dois homens são encarregados de fazê-los desaparecer. Em meio a isso, rola a Copa do Mundo na Argentina e o problema da dupla é fazer funcionar um radinho de pilhas para poder acompanhar os jogos. A banalidade em meio ao mal, como assinalou o diretor, durante o debate, citando a expressão de Hannah Arendt a respeito dos carrascos nazistas. 

Acontece que um dia, entre os "pacotes" (corpos) entregues pelo exército, aparece um homem bastante ferido mas ainda vivo. O que fazer com ele?, é a pergunta ética a dividir os dois homens.

 Bastante simples, e forte em sua simplicidade, Matar a un Muerto é profundo ao buscar a compaixão e o humanismo lá onde não parece ser possível encontrá-los. Um filme necessário neste momento em que a brutalidade política parece não mais chocar as pessoas e ressuscitar em vários cantos do mundo, mesmo aqui por perto. 

Los Fuertes (CHI), de Omar Zúñiga, é mais um aceno da curadoria à questão LGBT. O jovem Lucas (Samuel González) viaja para uma cidade litorânea no sul chileno para despedir-se de sua irmã. Está de viagem marcada para o Canadá, país onde ganhou uma bolsa de estudos. Mas no local conhece o contra-mestre de um barco de pesca, Antonio (Antonio Altamirano) e os dois se apaixonam. Um filme de fatura sólida, bem-feito em todos os aspectos, embora convencional, sobre a questão da liberdade de escolha de cada um ou uma - em especial no que diz respeito à própria sexualidade.  

Curtas 

Dominique (RJ), de Tatiana Issa e Guto Barra. A personagem título é uma pessoa transgênero, que vai visitar a mãe em uma ilha no foz do Amazonas. Pouco discursivo, o curta acompanha Dominique em planos-sequência, como a revelar o olhar do outro sobre ela. É uma ótima personagem pela articulação e franqueza como aborda os problemas e os preconceitos enfrentados. A mãe também é presença forte. Além de Dominique tem mais duas filhas transsexuais e diz como teve de se reinventar para enfrentar preconceitos e manter o amor materno.  

Joãozinho da Goméia - o Rei do Candomblé (RJ), de Janaina Oliveira ReFem e Rodrigo Dutra, traz à cena o personagem importante na religiosidade de matriz africana, discriminado e perseguido em seu tempo. O mundo do candomblé, a negação brasileira das raízes africanas e a homofobia são apresentados num filme que usa a performance como forma de expressão e comentário da narração em off. 

Remoinho (PB), de Tiago A. Neves. A jovem Maria volta com seu filho para a casa da mãe (Zezita Matos), no sertão paraibano. Trabalho de poucas palavras, expressa o desejo de rompimento com um ciclo familiar que parece se eternizar na vida das mulheres. Muito bonito e singelo. 

Você tem olhos Tristes (SP), de Diogo Leite, tem como personagem um bikeboy de aplicativo. Ou seja, o rapaz entrega comida, descolcando-se em sua bicicleta, e, como é negro e pobre, enfrenta preconceitos de classe e de raça. Um dos clientes é um velhote agressivo interpretado por Jean-Claude Bernardet, professor da USP, ensaísta brilhante e ator. Outra cliente é a mulher supostamente liberal vivida por Gilda Nomacce. As falas de Gilda são deliciosas, filtrando, pelos poros de um discurso em tese politicamente correto, todo tipo de preconceitos. Filme-denúncia, cuja proposta é a altivez do oprimido diante do opressor, foi, segundo o diretor, inspirado no livro A Ralé Brasileira, de Jessé Souza. 

 

Aos 89 anos, Ruy Guerra continua a ser o cineasta mais jovem em atividade no Brasil. A prova é este Aos Pedaços, seu novo longa-metragem e obra mais experimental de todo o lineup do Festival de Gramado. 

De maneira inventiva, Ruy investiga o tema do Outro (ou da Outra) através de quatro personagens. Um bígamo, Eurico  Cruz (Emílio de Mello), casado com duas mulheres chamadas Ana e Anna (Simone Spoladore e Christiana Ubach), e mais um tipo (Julio Adrião) que pode ser o demônio ou simplesmente um pastor evangélico disposto a atormentar a todos em nome da palavra revelada. 

O predomínio é do espaço fechado, embora as mulheres pareçam estar ora numa praia ora nas areias de um deserto. O tormento de Eurico é desencadeado uma carta o avisando de que está prestes a ser assassinado. 

O filme é um quebra-cabeças, que pode ser fascinante para uns e tedioso para outros. Não há uma "história" ser acompanhada, mesmo porque não se sabe se as coisas se passam na "realidade"ou apenas na cabeça do homem ameaçado. Para quem é cinéfilo, pode ser um prato feito decodificar referências, de Orson Welles ao Bergman de Persona, passando por Robbe-Grillet ou mesmo David Lynch. Os nexos lógicos se rompem e assistir Aos Pedaços pode ser uma experiência de abismo. Mesmo porque o próprio título indica nos coloca diante de fragmentos e não de alguma totalidade. Isso não quer dizer que não tenha significado. Apenas, que estes significados podem ser múltiplos e mesmo contraditórios entre si. Talvez, mais que uma obra sobre o espaço, seja um experimento sobre o tempo, algo do tipo de O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais.  Enfim, é embarcar na experiência ou recusá-la. Dignos de nota o rigor da direção e a fotografia inspiradíssima de Pablo Baião. 

O outro concorrente brasileiro, Me Chama que eu Vou, de Joana Mariani, é mais um documentário musical, desta vez tendo como personagem o cantor e performer Sidney Magal. Bem, é uma figura polêmica, tido em sua época como brega, escandaloso e outros adjetivos. Fez enorme sucesso de público, encantou mulheres e enraiveceu homens. Vamos reencontrá-lo agora, na maturidade, aos 70 anos, como um senhor saudável, plácido e bem-humorado, na paz em sua casa em Salvador. 

Além da entrevista, o filme conta com material de pesquisa de várias fases da carreira do artista. Mas o melhor é mesmo o que revela de sua personalidade, para além dos estereótipos (alguns verdadeiros) usados para defini-lo. Alguém de bem com a vida que se diverte, pasme, cantando músicas de excelente qualidade acompanhado ao piano. Filão inesgotável, esse dos documentários sobre as figuras da música brasileira.  

Estrangeiros

Matar a un Muerto (PAR), de Hugo Giménez, é o mais político dos concorrentes estrangeiros. Remete-se a 1978, época da ditadura de Alfredo Stroessner no Paraguai. Inimigos do regime são assassinados e os corpos desovados no campo, onde dois homens são encarregados de fazê-los desaparecer. Em meio a isso, rola a Copa do Mundo na Argentina e o problema da dupla é fazer funcionar um radinho de pilhas para poder acompanhar os jogos. A banalidade em meio ao mal, como assinalou o diretor, durante o debate, citando a expressão de Hannah Arendt a respeito dos carrascos nazistas. 

Acontece que um dia, entre os "pacotes" (corpos) entregues pelo exército, aparece um homem bastante ferido mas ainda vivo. O que fazer com ele?, é a pergunta ética a dividir os dois homens.

 Bastante simples, e forte em sua simplicidade, Matar a un Muerto é profundo ao buscar a compaixão e o humanismo lá onde não parece ser possível encontrá-los. Um filme necessário neste momento em que a brutalidade política parece não mais chocar as pessoas e ressuscitar em vários cantos do mundo, mesmo aqui por perto. 

Los Fuertes (CHI), de Omar Zúñiga, é mais um aceno da curadoria à questão LGBT. O jovem Lucas (Samuel González) viaja para uma cidade litorânea no sul chileno para despedir-se de sua irmã. Está de viagem marcada para o Canadá, país onde ganhou uma bolsa de estudos. Mas no local conhece o contra-mestre de um barco de pesca, Antonio (Antonio Altamirano) e os dois se apaixonam. Um filme de fatura sólida, bem-feito em todos os aspectos, embora convencional, sobre a questão da liberdade de escolha de cada um ou uma - em especial no que diz respeito à própria sexualidade.  

Curtas 

Dominique (RJ), de Tatiana Issa e Guto Barra. A personagem título é uma pessoa transgênero, que vai visitar a mãe em uma ilha no foz do Amazonas. Pouco discursivo, o curta acompanha Dominique em planos-sequência, como a revelar o olhar do outro sobre ela. É uma ótima personagem pela articulação e franqueza como aborda os problemas e os preconceitos enfrentados. A mãe também é presença forte. Além de Dominique tem mais duas filhas transsexuais e diz como teve de se reinventar para enfrentar preconceitos e manter o amor materno.  

Joãozinho da Goméia - o Rei do Candomblé (RJ), de Janaina Oliveira ReFem e Rodrigo Dutra, traz à cena o personagem importante na religiosidade de matriz africana, discriminado e perseguido em seu tempo. O mundo do candomblé, a negação brasileira das raízes africanas e a homofobia são apresentados num filme que usa a performance como forma de expressão e comentário da narração em off. 

Remoinho (PB), de Tiago A. Neves. A jovem Maria volta com seu filho para a casa da mãe (Zezita Matos), no sertão paraibano. Trabalho de poucas palavras, expressa o desejo de rompimento com um ciclo familiar que parece se eternizar na vida das mulheres. Muito bonito e singelo. 

Você tem olhos Tristes (SP), de Diogo Leite, tem como personagem um bikeboy de aplicativo. Ou seja, o rapaz entrega comida, descolcando-se em sua bicicleta, e, como é negro e pobre, enfrenta preconceitos de classe e de raça. Um dos clientes é um velhote agressivo interpretado por Jean-Claude Bernardet, professor da USP, ensaísta brilhante e ator. Outra cliente é a mulher supostamente liberal vivida por Gilda Nomacce. As falas de Gilda são deliciosas, filtrando, pelos poros de um discurso em tese politicamente correto, todo tipo de preconceitos. Filme-denúncia, cuja proposta é a altivez do oprimido diante do opressor, foi, segundo o diretor, inspirado no livro A Ralé Brasileira, de Jessé Souza. 

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.