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Opinião|Gramado 2018: 'Ferrugem', ou o bullying fatal

Longa de Aly Muritiba põe em cena o universo adolescente e, de maneira contundente, fala das consequências do vazamento na internet de um vídeo íntimo

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
 Foto: Estadão

GRAMADO/RS

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Frio e chuva na serra gaúcha, mas sessão quente com Ferrugem, novo filme de Aly Muritiba, desta vez ambientado no mundo adolescente.

A história começa com a visita de uma classe teen a um aquário da cidade. Observam os peixes, brincam e mexem uns com os outros e registram tudo em seus celulares. Sim, esses gadgets onipresentes, com suas câmeras indiscretas e obsessivas. A tal ponto que o professor Davi (Enrique Diaz) reclama que eles não mais observam o ambiente em que estão. Apenas o registram para ver depois, em casa. Há um comentário aqui sobre o mundo das imagens e também do simulacro.

Tati é uma dessas garotas, cheia de vida, bonita, alegre, curiosa. Um dia, um vídeo íntimo que ela fez com o namorado vaza para o grupo de whatsapp da escola. É o fim do seu sossego. E pode ser o fim de algumas outras coisas também.

A história evolui em uma linha narrativa clara e outra que apenas se desvela com o tempo. Acompanhamos Tati (Tifanny Dopke) e seu tormento. Por outro lado, a estrutura familiar de Davi, composta da ex-esposa, Raquel (Clarissa Kiste) e filhos só vai se delineando ao longo da trama. O registro fotográfico (do português Rui Poças) evoluiu da clareza inicial aos tons sombrios do 2º ato.

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É o terceiro longa de Aly Muritiba, baiano radicado em Curitiba. A Gente, o primeiro, é um documentário que fala dos agentes penitenciários, profissão que o diretor exerceu durante algum tempo. Para Minha Amada Morta evolui para uma trama de crime e vingança de estrutura bastante original. Agora, com Ferrugem, o mundo teen, suas angústias, seu frescor, seus impasses. E, sempre, na contraluz, o tema da culpa, que pede expiação. Ou, na falta desta, perdão.

No fundo, uma questão: quem vazou o vídeo foi responsável por tudo que aconteceu depois? E, como sustentar essa responsabilidade? Como reparar danos? Como seguir vivendo depois de consequências terríveis causadas por um momento de irreflexão?

São questões que atormentam os personagens e nos atingem a todos, na plateia. Porque todos nós fazemos parte deste mundo em que aparentes brincadeiras ou atos levianos podem mudar vidas e levar a danos irreversíveis. É a época dos fake news, o tempo do exibicionismo, a década da ausência de empatia verdadeira em relação ao próximo.

Ferrugem traz tudo isso de inquietante. Construído com uma estética implacável, em que os tons fotográficos produzem sensações, em sons e músicas se deslocam de seus sentidos originais para ganhar outros significados, em que determinados personagens falam sem que seus rostos sejam mostrados, em que relações familiares são feitas mais de silêncio que de diálogo.

Quando voltaremos a conversar de maneira franca com os nossos próximos?, parece perguntar esse filme forte e já sério candidato a prêmios neste Festival de Gramado que mal chegou à sua metade.

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Estrangeiro

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O delicado Mi Mundial, de Carlos Morelli, representa o Uruguai em Gramado (com coprodução brasileira). É a história de Tito, garoto do interior que se revela um talento para o futebol.

Há vários temas envolvidos, o mais aparente, a questão do sucesso juvenil no futebol. Os talentos logo são farejados por agentes, que envolvem a família toda no projeto. De súbito, a família toda dá um salto na escala social. Entram no esquema casa nova, planos de saúde, escolas particulares, e outras facilidades até então desconhecidas.

Coma inversão de papéis (o filho passa a ser o provedor), a posição paterna se enfraquece, o que cria problemas na estrutura familiar. O pai, Ruben (Néstor Guzzini) é vigia de um depósito e encarna essa ambiguidade: aproveita as benesses da situação, mas sofre com o enfraquecimento de sua posição de chefe de família. 

Tudo no entanto é conduzido de maneira um tanto superficial, num filme que nem por isso se torna desagradável de ver. Pelo contrário, em meio a tantos problemas, é um reencontro com um mundo mais ingênuo e estruturado. O mundo do interior, das vidas simples e sem grandes aspirações, a não ser viver e ser feliz. Nesse sentido, o futebol é, de fato, como falou o produtor Beto Rodrigues, apenas um pano de fundo para outras questões.

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Curtas

Dois curtas bem interessantes completaram o programa da noite.

Catadora de Gente (RS), de Mirela Kruel, tem por protagonista Maria Tugira Cardoso. Ela conta uma história de discriminação racial, opressão e, sobretudo, de luta e resistência. Ela trabalhou por mais de 30 anos no lixão de Uruguaiana até que, através da leitura de livros encontrados no próprio local, teve condições de adquirir conhecimento e visão crítica da realidade. Hoje é líder comunitária daqueles trabalhadores. O filme é comovente.

A Retirada para um Coração Bruto (MG), de Marco Antonio Pereira, é um dos curtas mais originais (e loucos) que já se teve oportunidade de ver. Ozório é um viúvo que, vivendo isolado na zona rural, se interessa por rock e recebe a visita de seres extraterrestres. Uma graça de filme.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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