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Opinião|Godard, Truffaut...

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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 Foto: Estadão

Muita clareza conceitual e um excelente material de arquivo tornam Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague um documentário indispensável sobre esse período do cinema francês e da cultura mundial. Com roteiro de Antoine de Baecque e direção de Emmanuel Laurent, o filme passa em revista a história dessa amizade entre os dois cineastas, que depois naufragou com toda a paixão e fúria características da época.

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O filme respira do primeiro ao último fotograma o ar jovem do final dos anos 1950 e e1960, quando a palavra de ordem era renovar, sempre renovar, contínua e implacavelmente. Colocar abaixo as "velhas estruturas", como se dizia então, e construir um mundo novo a partir de escombros do passado. A nouvelle vague foi uma das pontas de lança desse poder jovem, desse mundo em que algumas palavras, como "revolução" e "novo", eram colocadas na do dia, sacralizadas e aplicadas a tudo - à política, ao sexo, ao cinema.

Foi por isso muito sábia a decisão de Laurent de não entrevistar os participantes da "onda". Os sobreviventes estariam por aí disponíveis. Truffaut e Rohmer já morreram. Mas o que impediria que um dos protagonistas, Godard, fosse entrevistado e, junto com ele, seus amigos de outrora, Claude Chabrol e Jacques Rivette, todos eles vivos, ativos, produzindo filmes? Acontece que, se assim o fizesse, Laurent teria de se defrontar com depoimentos de octogenários, senhores de idade relembrando, mais de 50 anos depois, do tempo em que foram jovens e irreverentes. Possível, mas seria outro documentário. Ao invés dessa memorialística, Laurent preferiu mergulhar na profusão de imagens de que dispunha e flagrar a essência daquele movimento, que é a juventude.

Desse modo, vemos na tela entrevistas e trechos de filmes de Godard e Truffaut, ambos na flor da mocidade. Incisivos, insolentes, radicais, belos. Eles e seus atores e atrizes como Jean-Pierre Léaud e Jean-Claude Brialy, Anna Karina e Claude Jade. Há todo um clima de época, evidentemente irrepetível, que passa pelo jeito de falar, os penteados, os óculos, as cenas de rua de uma Paris daqueles anos, o hábito de fumar em qualquer parte. Coisas do passado, que ressurgem na tela com o frescor que então tinham.

Sem qualquer nostalgia. Tudo aquilo aconteceu, o mundo hoje é outro, mas não nasceu do nada. Todo o presente carrega em si uma parte do seu passado. Essa ligação dos dois tempos é feita por uma atriz jovem e contemporânea, Isild Le Besco, personagem muda, que folheia revistas e jornais antigos, numa aparente pesquisa que estaria fazendo sobre o assunto. É um recurso, digamos, ficcional, usado na construção desse documentário revelador.

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Laurent coloca em perspectiva não apenas o nascimento da nouvelle vague, mas a sua característica principal de ter sido uma ação entre amigos. Os rapazes viam filmes juntos, tinham os mesmos gostos e as mesmas repulsas, escreviam, filmavam, produziam e apareciam como figurantes nos filmes uns dos outros. A nouvelle vague é, também, uma história da amizade, de irmãos. Mas que se coloca contra um pano de fundo histórico, nem sempre percebido com clareza por seus participantes. Em determinados momentos apolítica, a nouvelle vague não deixa de se engajar em certas causas - a volta de Langlois para a direção da Cinemateca, o maio de 68. Mas é dessa coesão de momento que nasce a cisão posterior.

Maio e seu engajamento caíram como um raio entre Godard e Truffaut. Godard tornou-se maoísta radical; Truffaut volta-se cada vez mais para o tema do afeto e o relacionamento entre homem e mulher. O revolucionário era o modelo do primeiro; Matisse, pintor da beleza, o espelho do segundo. A história, que num momento os unira numa bela amizade, depois se incumbiu se separá-los, como inimigos.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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