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Opinião|Glenn Gould: alumbramento e serenidade

Produz uma curiosa impressão ouvir, na sequência, as duas versões de Glenn Gould para as Variações Goldberg. A primeira, de 1955, é rápida, brilhante, um Bach sem casaca, como não se havia ouvido até então. A segunda, de 1981, parece tocada por outro intérprete. Tem brilho, mas é mais reflexiva, às vezes até dolente. Convida mais ao pensamento. Os tempos são muito diferentes. O primeiro disco dura 38 minutos e 26 segundos; o outro, nada menos que 51 minutos e 14 segundos. A diferença de duração entre algumas partes é chocante. A Ária de abertura tem um minuto e 53 segundos numa versão e três minutos e cinco segundos na outra. É muita diferença! Mas seria engano achar que se trata apenas de uma questão de tempo, embora esta dimensão seja fundamental. Ralentar um andamento pode ter implicações filosóficas na percepção da música, como sabia o maestro romeno Sergiu Celibidache. No caso de Gould, pode-se intuir uma mudança de concepção musical e mesmo existencial entre as duas gravações.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

A comparação entre os registros pode ser feita na caixa Glenn Gould - A State of Wonder, que contém ainda um terceiro CD com a conversa entre o pianista e o crítico musical Tim Page, gravada em 1982. A entrevista seria uma peça promocional pensada para a segunda gravação das Variações. Mesmo assim não perde a espontaneidade, embora Page diga que seus encontros anteriores com Gould foram bem mais divertidos, marcados pelo espírito lúdico do artista e seu senso de humor. Conta que Gould chegou para a gravação em estúdio em sua indumentária usual, para o verão: dois suéteres sobre uma camisa de lã, luvas, cachecol, casaco de couro preto e boné na cabeça. Parecia doente, diz o crítico, com a pele esmaecida e cabelo que caía aos tufos. Mas a verve continuava intacta.

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O crítico o interroga sobre a diferença de tempos entre as duas versões e Gould responde que era muito apressado na época em que tocou a primeira. Acontece que o disco de 1955 é considerado um marco na gravação de música erudita. Gould trouxe para o piano uma música até então tocada em cravo - e por intérpretes grandiosos como Wanda Landowska, tida como intérprete canônica tanto das Variações como dos dois volumes da Arte da Fuga. Gould revolucionou tudo. Trouxe as Variações para o piano e deu-lhes uma interpretação que revelou todo o seu frescor - como ele imaginava que Bach as havia pensado e executado. Quando se soube da regravação de 1981, a pergunta que não queria calar era: será que Gould é capaz de superar a si mesmo?

No entanto, ele próprio não tinha em grande conta a sua leitura de 1955. Além de achá-la juvenil, considerava-a cheia de equívocos. Chegou a dizer que aquele provavelmente fora o disco de música clássica mais superestimado de todos os tempos. Entrava em detalhes. Sobre a Variação nº 25, por exemplo, ele dizia que soava como um Noturno de Chopin. "É como se a música dissesse: Por favor, prestem atenção: isto é uma tragédia. É como se alguém não tivesse a dignidade de suportar o sofrimento com um toque de silenciosa resignação." A reinterpretação da mesma peça, 26 anos depois, diz o crítico, "é muito mais sóbria e introspectiva, com tempos mais lentos".

Da audição comparada das duas talvez se possa chegar àquilo que Gould buscava na música - um estado de alumbramento. E serenidade.

(Cultura 7/6/09)

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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