Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|Freud Além da Alma

Num dos extras do DVD de Freud Além da Alma (John Huston, 1962, Versátil), o psicanalista Renato Mezan situa historicamente o interesse do diretor norte-americano pela vida do pai da psicanálise. Nos anos 1950 havia saído novo material biográfico sobre Freud, inclusive parte da correspondência mantida com Wilhelm Fliess nos anos cruciais de descoberta, quando o jovem médico tateava entre a neurologia e algo que ele não sabia direito ainda o que seria - e mais tarde chamaria de psicanálise.

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

De fato, é um material apaixonante, ainda que unilateral (só temos as cartas de Freud, não as de Fliess) e que ajuda muito na reconstrução de uma época arqueológica. Freud morava em Viena e Fliess em Berlim. É muito possível que a troca de cartas tenha ajudado Freud a deixar claras as coisas para si mesmo. Para os leitores, é uma forma de tomar consciência de como são penosos os primeiros passos em terreno inexplorado. De qualquer maneira, de acordo com Mezan esse material, entre outros, ajudava naquele momento a "humanizar" o descobridor da psicanálise e torná-lo um personagem vivo, atual e interessante, merecedor de ser tratado pelo cinema.

PUBLICIDADE

Tocado pela aura de Freud, Huston tinha em mente um projeto ambicioso. Tanto assim que convidou ninguém menos que o filósofo francês Jean-Paul Sartre para escrever o roteiro. Sartre aceitou, demorou-se para entregar o texto e, quando o fez, este veio na forma de um calhamaço de centenas de páginas, definido por Huston como "infilmável". Sartre não baixou o facho e, ofendido, comentou que diretores de cinema "ficavam tristes quando tinham de pensar". Enfim, Freud, segundo Sartre, não foi para o celuloide. Acabou publicado em forma de livro (no Brasil pela Nova Fronteira, com 769 págs.).

Dessa forma, o roteiro de Freud Além da Alma vem assinado por Charles Kaufman e Wolfgang Reinhardt que, se pode dizer, fizeram bom trabalho para Huston, fornecendo-lhe uma base sólida sobre a qual ele pudesse construir suas imagens. A dificuldade seria dar vivacidade a uma história que tira todo o seu encanto da vida interior dos personagens e não propriamente de acontecimentos trepidantes em termos de ação. Mas Huston se mostrou suficientemente lúcido para dar ao filme o tom de uma história de mistério, empolgante saga de conquista de um território desconhecido - metáfora, aliás, utilizada com frequência pelo próprio Freud ao se referir ao inconsciente.

Freud Além da Alma se concentra nos anos iniciais da trajetória do personagem, no desbravamento desse novo campo do conhecimento, aliás, bastante incômodo para o narcisismo contemporâneo. Não por acaso, a narrativa começa pela comparação freudiana de sua percepção da primazia do inconsciente com as teorias de Copérnico e Darwin, que desmistificaram a ilusão da Terra como centro do sistema solar e a do homem como espécie à parte no reino animal. A terceira "ferida narcísica", diria Freud, teria chegado com a psicanálise, ao revelar que a razão é incapaz de explicar o todo da dimensão humana. O homem "freudiano" não seria dono de sua própria casa ao ignorar o sentido daquilo que pensa, sente ou faz. A psicanálise produziu esse descentramento radical.

E por isso mesmo provocou toda sorte de resistências. É delas que se ocupa o filme em boa parte, mostrando um Freud estigmatizado pela classe médica do seu tempo, mas encontrando um aliado na figura de Joseph Breuer (Larry Parks). Para contar essa história, os roteiristas e Huston usam técnicas descritas por Freud na mecânica dos sonhos e conhecidas por poetas e artistas em geral: fundem personagens, intercambiam características de um para outro, recriam cenas, inventam e fantasiam para melhor dar forma ao relato. Assim, adivinhamos na paciente inaugural, Cecily (Susannah York), traços de Anna O., a histérica tratada por Breuer. Mas Cecily não é Bertha Pappenhaim (verdadeiro nome de Anna O.) e sim um compósito de vários casos reais e outros inventados.

Publicidade

Do mesmo modo, o filme mostra como a invenção da psicanálise foi não apenas um embate com os pacientes, mas de Freud consigo mesmo. Não é que teve apenas de lutar contra resistências externas e internas para desenvolver suas ideias e chegar à "verdade" do inconsciente. O neurótico que ele de fato era deu-lhe as chaves para descobrir o mecanismo geral do psiquismo e o fator sexual inconsciente que está em sua base. Tudo isso o filme de Huston narra, inventando para ser mais fiel ainda à realidade dessa extraordinária aventura pessoal e do conhecimento.

(Cultura, 8/11/09)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.