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Opinião|Filme de Lina Chamie no Festival de Cannes

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Fiquei muito feliz ao saber que o filme Via Láctea, de Lina Chamie, vai participar da prestigiosa Semana da Crítica, no Festival de Cannes, no mês que vem. Já vi o filme e gostei muito. Fiz uma matéria sobre ele para o Caderno 2, que reproduzo abaixo.

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SÃO PAULO - Via Láctea é ´um corpo-a-corpo com a cidade´. É dessa maneira que a diretora Lina Chamie define seu segundo longa-metragem, atualmente em fase de finalização. De fato. Apesar de seu nome etéreo, Via Láctea tem os pés bem no chão. São Paulo não é apenas uma locação onde os personagens vivem seus dramas e alegrias - é, ela própria, a cidade enorme e caótica, uma personagem em si mesma, que interage e, em mais de um sentido, interfere no destino do trio principal presente em cena - Heitor (Marco Ricca), Júlia (Alice Braga) e Thiago (Fernando Alves Pinto).

Por isso mesmo, o filme viaja por ruas, avenidas e construções conhecidas de Sampa: Avenidas Paulista, Dr. Arnaldo, 23 de Maio, Tiradentes, Praça da Sé, Viadutos do Chá e Santa Efigênia, Teatro Oficina, Edifício Martinelli, Livraria Francesa da Barão de Itapetininga. Essas locações abrigam a história de amor entre Heitor, um professor de literatura e escritor, a atriz Júlia e Thiago, um colega de teatro.

Mas um tempo grande se passa no interior do automóvel de Heitor. Como todo paulistano, ele também precisa se deslocar de lá para cá e enfrenta as dificuldades de praxe no trânsito. Sim, o implacável, congestionado e estressante tráfego da capital é, também ele, personagem de Via Láctea. Heitor o enfrenta, como nós o enfrentamos no dia-a-dia, e essa impotência diante do deslocamento de um ponto a outro será um aspecto essencial da trama, escrita pela própria Lina e roteirizada por ela e por Alexei Habib.

Paulistana da gema Por tudo isso, Via Láctea jamais poderia ter sido filmado em um estúdio. ´Interessa muito o entorno, para ver como o mundo interior dos personagens sofre interferência e é invadido pelo caos que está em volta deles´, diz Lina em conversa com o Estado. Não que São Paulo seja vista de maneira inteiramente negativa. Paulistana da gema, Lina sabe decifrar a cidade e identificar a ´beleza que há na feiúra´, como diz. Por exemplo, no encanto do centro velho, para onde ia, com o pai, o poeta Mário Chamie, quando menina: ´Ir à Livraria Francesa, na Barão de Itapetininga, era um programa´.

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Por outro lado, a São Paulo retratada não tem nada de cartão postal. Não esconde seus problemas e suas mazelas. Pelo contrário. Filtra-os através de uma câmera amorosa, que parece muito mais preocupada em compreender do que em avaliar ou julgar. Ou mesmo se distanciar. É um olhar participativo e parceiro em relação aos seus personagens e, vale insistir, São Paulo é um desses personagens. Áspera em muitos momentos, humana em outros. ´A proposta era filmar com uma câmera pequena, leve, sem luz mesmo em cenas noturnas, um corpo-a-corpo semidocumental´, diz, usando novamente a metáfora física. Para falar tecnicamente, Lina captou as imagens, 80% delas, com uma mini-DV. Os 20% restantes em película, parte em super 16mm, parte em 35 mm. ´Eu precisava de texturas diferentes para exprimir momentos distintos da história´, diz.

Vocação semidocumental Via Láctea alterna essa vocação semidocumental muito realista com momentos poéticos. E, não por acaso, esse filme tão paulistano se origina de uma célula poética de outra origem: ´Como se trata de uma história descontínua no tempo, fragmentada, era preciso ter uma espinha dorsal muito forte, e ela me foi fornecida pelo poema Campo de Flores, de Carlos Drummond de Andrade´. O que ´diz´ esse poema do grande escritor mineiro? Em suas primeiras estrofes: ´Deus me deu um amor no tempo de madureza,/Quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme. /Deus - ou talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,/e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.´

Essa é a linha temática. O amor maduro de Heitor, em relação a quem Júlia não passa de uma criança. Ao mesmo tempo os impasses desse amor. Em outros versos do mesmo poema, Drummond se adverte que, tendo lhe tocado esse amor de maturidade, teria de se armar ´de uma grave paciência´. Virtude difícil no tempo atual, na cidade atual, na dimensão da pressa atual - características em todo opostas à serenidade prescrita pelo poeta a si mesmo. Daí os desencontros presentes no filme, arestas que se expressam na trama, na textura, nos tempos oblíquos da narração.

Na esfera íntima desse caso de amor exasperado, o social não fica de fora; não entra pelas portas dos fundos e nem é colocado de maneira artificial. Ele se entrelaça na narrativa, suavemente, porque as próprias vidas humanas se desenvolvem e se entretecem com as outras vidas de que se compõe o social, naturalmente. A bordo do seu carro, Heitor, esse amante apressado e em crise, não pode ficar indiferente ao que se passa lá fora. Poderia até tentar ignorar a cidade e suas contradições, mas não conseguiria se instalar nesse esplêndido isolamento, como nenhum de nós é de fato capaz.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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