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Cinema, cultura & afins

Opinião|Ex-Isto: invenção que beira o sublime

Ex-Isto, de Cao Guimarães, é uma experiência cinematográfica que beira o sublime.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Parte de uma indagação instigante. Imagine o que teria acontecido caso René Descartes tivesse vindo ao Brasil com Maurício de Nassau? A hipótese serve de fio condutor a uma viagem que inclui o Amapá, Recife e Brasília.

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Pouco a pouco, o racionalista Descartes, que acreditava ser a razão um bem partilhado por todos (como ele mesmo escreve em uma de suas obras mais famosas), vê esse dom humano derretido pelo calor, pela cultura do país, por tudo enfim que contradiz a boa e velha lógica europeia.

Descartes é vivido pelo ator João Miguel num filme que procura, de alguma forma, estabelecer não o contato, mas a fricção entre obras tão díspares como O Discurso do Método, do filósofo francês, e Catatau, o livro-rio do paranaense Paulo Leminski. Não se pode dizer que o filme seja adaptação de um ou de outro. Ele trabalha na zona de contato problemática entre ambos, entre razão e desrazão, buscando, nesse limite, algo da nossa peculiaridade como cultura.

O resultado é brilhante, feito de ideias bem sacadas e imagens de grande beleza e impacto. O som, e a trilha sonora também são fundamentais para o filme.

Na apresentação do filme, ano passado no encerramento do Festival de Gramado, Cao Guimarães pediu paciência ao espectador. Preveniu a um público já viciado na estética diluída da televisão que não se tratava de um filme narrativo e que as pessoas tentassem acompanhá-lo com a atitude mental desprendida de quem faz uma viagem.

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Perfeito e, lido assim, Ex-Isto é uma viagem e tanto. Desde que se entenda por viagem algo diferente do turismo. Viagem pressupõe abertura, descoberta, surpresa. Risco, numa palavra. Turismo, no sentido mais mesquinho, implica em planejamento. Hotéis que se pareçam ao máximo com a casa que se deixou para trás, comidas de sabor exótico, mas não a ponto de causar estranhezas desagradáveis; novidades, mas que não coloquem nada em perigo, nem a integridade física e nem uma visão de mundo já construída. A diferença entre a viagem e o turismo é a mesma que existe entre o risco e a segurança.

Com o cinema também é assim. 99% é mais do mesmo. Reciclagem, com um grãozinho de novidade para que o espectador não se sinta lesado ao pagar o ingresso. O 1% restante é o que resta daquele cinema inclassificável, cujas cenas se sucedem sem que nada da experiência anterior nos prepare para esta que estamos vivendo. É a invenção, cada vez mais rara nesta arte de vocação industrial. O cinema de Cao Guimarães situa-se nessa faixa minoritária, porém fundamental.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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