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Cinema, cultura & afins

Opinião|ETV 2022: vencedores e balanço

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

O brasileiro Quando Falta o Ar, de Anna Petta e Helena Petta, e o polonês O Filme da Sacada, de Pawel Lozinski, foram os vencedores do 27o É Tudo Verdade. 

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Premiou-se, do lado nacional, um retrato do que foi - e tem sido - o combate à pandemia do Covid-19 em nosso país. De um lado, a incúria criminosa das autoridades sanitárias. De outro, a dedicação, o heroísmo mesmo, dos funcionários do Sistema Único de Saúde (SUS) que, com grande esforço e risco das próprias vidas, evitaram que o desastre fosse ainda maior. Um filme de consciência e utilidade pública. 

Do lado estrangeiro, um doc subordinado a um "dispositivo", formato que costuma seduzir parte da crítica - e dos júris. Aqui a câmera fica sempre montada no balcão do cineasta, que interroga os passantes e pede que conte a ele suas vidas. Acaba sendo interessante, um diálogo óbvio com o clássico Crônica de um Verão, de Jean Rouch e Edgar Morin. 

 Foto: Estadão

Findo o festival, é importante registrar que, mais uma vez, ao longo de dez dias, o público foi brindado com uma safra muito boa do cinema documental. 

Pelo lado brasileiro, Adeus, Capitão, de Vincent Carelli e Tita, mais um opus incontornável sobre a questão indígena no País, para ser colocado ao lado de Corumbiara e Martírio, os longas anteriores de Carelli que os especialistas já têm na conta de clássicos. 

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Chamou também a atenção o rigoroso Sinfonia de um Homem Comum, de José Joffily, do qual só discordo do título. O personagem retratado, o diplomata brasileiro José Bustani, é um tipo incomum em nossos tempos. Dotado de inteligência e espinha dorsal, enfrentou os Estados Unidos quando era presidente da Organização de Proibição de Armas Químicas, da ONU. Tentou provar que a alegação para a invasão do Iraque - a de que o país de Saddam Hussein teria armas de destruição em massa - era falsa. Foi ameaçado - de maneira direta, com vocabulário que não ficaria a dever às milícias cariocas - e perdeu o cargo. Aposentado, dedica-se hoje à sua outra paixão - a música, sendo um virtuose do piano. Uma vida exemplar. Incomum. 

O documentário de Joffily é ultra minucioso, ouve as pessoas certas e monta o quebra-cabeça de uma história que mais parece inventada do que real. Desmonta qualquer ilusão ingênua sobre os paladinos da democracia no mundo. 

Gostei também de Pele, de Marcos Pimentel. Conta uma história de resistência e revolta que se expressa nos muros das cidades. Grafites, desenhos, simples frases rabiscadas, pinturas elaboradas conformam a "pele" das cidades. E, em sua superfície, revelam talvez o que há de mais profundo - esse rumor de fundo do inconformismo diante de uma vida percebida como de todo insatisfatória. São o signo visual de dissonância na falsa harmonia buscada pelo poder. 

Também muito interessante os títulos dedicados a artes e/ou artistas como Belchior, Apenas um Coração Selvagem, de Natália Dias e Camilo Cavalcanti, e Rubens Gerchman, o Rei do Mau Gosto, de Pedro Rossi. Mais que as trajetórias do cantor e compositor, e do artista plástico, trazem de volta o ethos de um tempo que, cada vez mais, parece longínquo e perdido. Mas que, quando ressurge, o faz com insuspeita vitalidade. 

Eneida, de Heloísa Passos, foi uma boa surpresa. Com a história de uma tentativa de reconciliação, o que se desenha é a estrutura mais oculta de uma família, com seus elementos religiosos, patriarcais e de prevalência de interesses materiais. Afetos e interesses não costumam combinar bem. Essa dissintonia acaba pondo a nu as rachaduras de uma instituição que se acredita tão sólida e permanente - apenas pelo fato de ser antiga e não ter encontrado ainda substituto à altura.

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Destaco algumas boas atrações entre os estrangeiros. 

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A começar por Assassinos sem Punição, em que o diretor David Nicholas Wilkinson mostra como apenas uma ínfima parte dos crimes nazista foi punida, ao contrário do que se pensa. 

Batata, de Noura Kevorkian, traz algo além dos costumeiros filmes sobre a guerra na Síria. A diretora consagrou dez anos à obra e teve a sorte de encontrar uma grande personagem, Maria, refugiada síria num campo libanês, e que trabalha na lavoura de batatas. Através do filtro dessa personagem, a tragédia da guerra se esboça de corpo inteiro. Mas a vemos de maneira diferente. 

Kurt Vonnegut: Desprendido do Tempo, de Robert B. Weide e Don Argott, é outro filme feito ao longo do tempo, com uma série de entrevistas com o autor de Matadouro 5 e outras obras cult. 

Aparenta-se, nesse aspecto, a Cesária Évora, de Ana Sofia Fonseca, focada na trajetória oscilante da grande intérprete cabo-verdiana. 

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Em meio à invasão da Ucrânia pela Rússia, Navalny, de Daniel Roher, ganha maior atualidade. Acompanha Alexei Navalny, líder da oposição russa, sobrevivente de um envenenamento por agente químico em 2020. Em busca de repercussão internacional para seu caso, Navalny parece flertar talvez em demasia com a mídia. Às vezes, parece artificial demais para ser levado a sério. 

Outro filme político é O Processo - Praga 1952, de Ruth Zylberman sobre o kafkiano julgamento de líderes da antiga Tchecoslováquia, caídos em desgraça e acusados de traição. Um processo cruel, de cartas marcadas, testemunha do sombrio período stalinista no Leste Europeu. 

Já Riotsville, de Sierra Petttengill, mostra as raízes da violência policial nos Estados Unidos, através do treinamento que recebem para controle de multidões. Não se constroi uma polícia repressiva e racista de improviso. É preciso muito treino e organização, como se mostra através de filmagens de treinamento dos policiais. 

E, para seguir nas mazelas do mundo, Tantura, de Alon Schwarz, denuncia o massacre dos moradores palestinos em uma cidade à beira-mar por ocasião da instalação do Estado de Israel em 1948. Sai-se do filme com o sentimento de indignação. Mas também de admiração pelos intelectuais judeus que ousam ir contra a corrente e denunciam as fissuras do mito fundador do país. 

Ultravioleta e a Gangue das Cuspidoras de Sangue, de Robin Hunzinger, talvez seja o mais criativo dos concorrentes internacionais. Num antigo maço de cartas, o diretor descobre o caso de amor mantido por sua avó com a jovem Marcelle. Como dispunha de poucas imagens das duas mulheres, o jeito foi (re)construir toda a sua história através de outras imagens, filmes e fotos antigas. O edifício documental é, desse modo, cimentado pela ficção. Redunda numa narrativa límpida e emocionante, a história de uma jovem rebelde, cheia de vida e apaixonada. Lindo filme. 

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Além das competições, houve bons filmes em outras seções do festival. No foco latino-americano, destaco O Silêncio do Infiltrado, de Anaïs Taracena, da Guatemala. História de um herói anônimo do povo guatemalteco, o jornalista Elias Barahona, que se infiltrou num dos governos mais repressivos da história do país e, com as informações obtidas, conseguiu salvar muitas pessoas perseguidas. 

Mafifa, de Daniela Muñoz Barroso, recupera a personagem fascinante de Gladys Esther Linares, conhecida por Mafifa, tocadora de "campana", um instrumento de percussão metálico da conga cubana. Mafifa havia morrido 40 anos antes e tentar saber quem foi e o que representou era como perseguir uma sombra do passado. Em boa medida, e apesar de uma certa retórica excessiva da imagem, a diretora é bem-sucedida.

Nos programas especiais, destaco JFK Revisitado: Através do Espelho, em que Oliver Stone, através de novos documentos e depoimentos, reforça a tese expressa em seu longa de ficção de 1991, JFK - a Pergunta que Não Quer Calar. Ou seja, que o assassinato de John Kennedy, em 1963, não foi cometido por um lobo solitário, Lee Harvey Oswald, mas por um complô da extrema-direita, com participação da CIA, do FBI e do complexo industrial-militar dos EUA. 

Joyce Carol Oates: Um Corpo a Serviço da Mente é um retrato simpático da grande escritora, traçado com suavidade pelo sueco Stig Björkman. O subtítulo é curioso e remete à mulher tímida e de aparência frágil, mas que, no fundo, revela-se uma usina de energia - publicou até agora mais de cem romances. O mais recente foi uma biografia romanceada de Marilyn Monroe - Blonde - em duas partes, já publicadas no Brasil. A não ser que, a esta altura, já tenha escrito outro. O próprio filme, em seus letreiros finais, brinca com essa profusão. Afirma que, ao longo das filmagens, Joyce havia escrito mais sete livros, quatro peças de teatro, fora ensaios, adaptações para cinema e outras coisinhas menores. Uma verdadeira máquina. 

Dois curtas em particular me chamaram a atenção (não vi todos). Em Sem Título #8: Vai Sobreviver, Carlos Adriano presta homenagem à atriz Anna Karina, em intervenção criativa de sua interpretação em Viver a Vida (1962), de Jean-Luc Godard. Diz Adriano que foi o filme que o levou a fazer (e pensar e viver) cinema. Uma ótima inspiração, sem dúvida. 

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Lindo também é Duke Ellington em Isfahan, de Ehsan Khoshbakht, que mostra a turnê do Duke pelo Oriente Médio nos anos 1960. Com a Guerra Fria, interessa aos Estados Unidos promover uma certa "política da boa vizinhança" pelo mundo, a exemplo da que fizera nos anos 1940 na América Latina, durante a Segunda Guerra Mundial. Acusados de serem uma sociedade racista, os Estados Unidos promoviam turnês com seus grandes artistas negros, como Louis Armstrong e o próprio Duke Ellington e sua orquestra. Pura estratégia de soft power, mas - assim são as coisas - produziu resultados de raro brilho. Duke ficou impressionado com o que viu naqueles países distantes e gravou um álbum antológico, Far East Suite, inspirado na viagem. Uma das faixas, talvez a obra-prima, leva o nome da cidade iraniana em que ele se apresentou, Isfahan. Beleza pura. 

 Foto: Estadão

Na parte histórica seria preciso lembrar de História da Guerra Civil (1921), de Dziga Vertov, filme recuperado, que teve a primeira exibição na América Latina. Um presente para o cinéfilo, em especial para aquele apreciador do cinema documental. A vinda do filme coincide com o lançamento do imprescindível Cine-Olho, Manifestos, Projetos e Outros Escritos (Editora 34, 704 páginas), textos de Vertov traduzidos e organizados por Luis Felipe Labaki. 

 

PREMIAÇÃO

Longa-metragem 

. "Quando Falta o Ar", de Ana Petta e Helena Petta (SP) - melhor documentário brasileiro

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. "O Filme da Sacada", de Pawel Lozinski (Polônia) - melhor documentário internacional

"Sinfonia de um Homem Comum", de José Joffily (RJ) - menção honrosa do Júri Oficial e Prêmio EDT (Associação de Profissionais de Edição Audiovisual) de melhor montagem (para Jordana Berg)

"Ultravioleta e as Gangues Cuspidoras de Sangue", de Robin Hunzinger (França) - menção honrosa

 

Curta-metragem

 

"Cantos de um Livro Sagrado", de Cesar Gananian e Cassiana der Haroutiounian (Brasil-Armênia) - melhor curta brasileiro, Prêmio Mistika

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. "Cadê Heleny?", de Esther Vital (SP) - menção honrosa (curta brasileiro) e Prêmio Aquisição Canal Brasil de Incentivo ao Curta-Metragem

 

. "Solmatalua", de Rodrigo Ribeiro-Andrade - Prêmio EDT (Associação de Profissionais de Edição Audiovisual)

 

. "Alágbedé", de Safira Moreira, e "Solmatalua", de Rodrigo Ribeiro-Andrade - curtas de realizadores afro-brasileiros que "trazem novos ares para nosso pensamento cinematográfico"

 

. "Como se Mede um Ano?" (EUA) - melhor curta internacional

 

. "Ali e sua Ovelha Milagrosa" (Iraque/Reino Unido), de Maythem Ridha - menção honrosa

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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