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Opinião|ETV 2022: Cesária Évora, a diva dos pés descalços

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Como o É Tudo Verdade toma o pulso do momento, às vezes apresenta uma sobrecarga dos males do mundo. Normal, numa época em que florescem distopias, ataques à democracia, guerras e injustiças sociais. Mas, por sorte, o festival traz, como contrapeso, os bens do mundo. Seus artistas, os que produzem beleza para aliviar nosso peso de existir. É o caso deste belo documentário português Cesária Évora (1941-2011), de Ana Sofia Fonseca. 

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Vinda da pobreza em Cabo Verde, a intérprete encantou o mundo com suas "mornas", cantadas com voz profunda. Há vozes femininas que nos tocam no centro do ser, como as de Billie Holiday, Elza Soares, Edith Piaf, Nana Caymmi. Cesária faz parte dessa família. A dor do mundo está nelas; e também a alegria.  

No entanto, como mostra o filme, ninguém poderia crer na carreira artística dessa moça pobre, que cantava nos botequins da ilha de São Vicente por uns trocados. O encontro com o empresário José da Silva (o principal narrador do filme) mudou sua história. Levou Cesária para morar em sua casa em Paris e conseguiu lançá-la na capital francesa. Cesária cantou no Olympia e em outros teatros. Repercutiu na imprensa. Passou a viver em turnês pelos quatro cantos do mundo. 

A fama lhe trouxe muito dinheiro, muita consagração e também um tanto de angústia. O público adorava essa cantora de pés descalços, que fumava e bebia em cena. No entanto, como conta José da Silva, este era um equilíbrio instável. "Ela bebia por timidez, para poder entrar em cena", diz. Mas às vezes exagerava e então ia água abaixo. O empresário precisava controlar sua artista e evitar que ela passasse do ponto e inviabilizasse suas apresentações. 

O filme não esconde também as crises depressivas. Cesária chegou a ficar onze anos sem sair de casa, presa de uma depressão profunda. Já mais perto do fim da vida foi vítima de um AVC, o que complicou ainda mais seu quadro psicológico. 

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Mas a vemos também no auge da glória. Andando pelo mundo e sendo recepcionada como uma rainha. Cheia de dinheiro e gastadeira. Sempre de acordo com o empresário, entrava em joalherias de Paris e torrava fortunas. Entrou numa agência da Mercedes Benz, comprou um carro e levou-o para Mindelo, onde morava. 

Há também sequências divertidas, como o improvável dueto entre Cesária e o astro cubano do Buena Vista Social Club, Compay II. Não se entendiam de jeito nenhum, eram duas vozes em conflito, dois egos em combate que, no final, acabaram se harmonizando graças ao humor do cubano e o charme desbocado da africana. 

Em sua época de ouro, sua casa no Mindelo tornou-se um centro de peregrinação. Cheia de familiares e também de agregados, com a cozinha sempre em atividade, era visitada por turistas e também pelos desvalidos da Ilha de São Vicente, estes em busca de um prato de comida, alguns trocados, uns tragos e a companhia da diva, generosa com todos. 

Essa Cesária pródiga contrastava com o que ela própria dizia em entrevistas. Queria ter apenas uma casa para morar e um dinheirinho no bolso para suas necessidades. Nada mais lhe parecia necessário. Em sua época de vacas magras, sua casa chegou a desabar por falta de manutenção. 

 O filme não mostra, mas Cesária esteve no Brasil, em São Paulo. Vê-la e ouvi-la em cena, ao vivo, foi uma experiência inesquecível. Grande artista. 

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Competição Internacional de Longas e Médias-Metragens Online É Tudo Verdade Play 06/04/2022 às 19h00

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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