Era uma Vez na Anatolia, do turco Nuri Bilge Ceylan, é uma espécie de objeto cinematográfico não identificado, destoante em meio à banalidade dominante. Ele é longo (150 minutos) ao invés de sintético, como recomenda o manual do comércio. Sua trama é rarefeita e não explícita. Seu tempo é lento e não acelerado. Entrega sua história aos poucos e não por completo. Trabalha mais nas lacunas do que no preenchimento completo de todos os espaços. Para resumir: é um filmaço, que pede um espectador à altura do seu grau de elaboração.
Passa-se, em sua quase totalidade, na planície semidesértica onde um grupo de homens busca um cadáver enterrado. Há um crime, e isso fica claro desde o início. Nos carros viajam os dois homens que já confessaram ter matado alguém. Viajam também policiais, um médico, um promotor, um militar, dois cavadores com suas pás. O criminoso confesso (sim, porque um dos dois toma à frente) é um homem de rosto trágico. Ele diz não se lembrar direito do lugar onde enterrou o corpo, apenas que foi à sombra de uma "árvore redonda". A busca atravessa a madrugada.
Enquanto isso, os homens conversam. Falam do que se fala quando é preciso matar o tempo. Falam sobre a próstata do promotor, que deve estar com problemas porque ele pede a toda hora que o carro pare para fazer xixi. Falam da vida. Numa parada, o promotor conta ao médico uma estranha história, a de uma mulher jovem e "magnífica", que disse que ia morrer num determinado dia e numa determinada hora. E isso de fato aconteceu. O médico busca uma explicação racional para o fato. Mas a história fica assim, jogada, entre parênteses, para fazer sentido, talvez, já mais para o final.
Há também a parada num vilarejo situado no meio do nada, quando a caravana é recebida pelo líder local. Ele dá de comer e de beber a todos. Quem serve a refeição é a filha do chefe, moça de rosto lindo. Quando ela dá comida a um dos supostos criminosos, ele chora. Por quê? Não se sabe. Mas pode-se conjeturar. E guardar a informação para depois. A beleza excessiva causa um sentimento tanto de deslumbramento quanto de tristeza. Mas essa é uma interpretação e um dos subtemas de Anatolia: qual o espaço da beleza nesse mundo rude?
Só isso? Não, muito mais. Há desdobramentos que convém não revelar, mesmo porque o mais interessante do filme é esse processo mesmo de descoberta. Em seu verso mais popular, Antonio Machado dizia que "No hay camino, se hace camino al andar". O "caminante", no caso o espectador, terá de ir fazendo o seu próprio percurso no entendimento da história à medida que se deixar tocar por ela. E ao mobilizar sua sensibilidade e inteligência em busca dessas frestas abertas pela narrativa e que são em si extremamente reveladoras.
Resta dizer que a história, em aparência banal e contada de modo lacunar, ambiciona algo muito maior do que aparenta. Ela é uma espécie de iceberg, que revela apenas parte relativamente pequena do seu todo, o mais importante ficando abaixo da linha d'água. Era o que Hemingway recomendava aos candidatos a escritor. O grande texto expõe de maneira imediata apenas parcela da sua real dimensão. O resto está nas entrelinhas, submerso, como um convite a ser decodificado e preenchido pelo leitor/intérprete. Com o grande cinema passa-se o mesmo. Ele exige um espectador ativo, participante, imaginativo, disposto a encontrar em si as ferramentas que lhe permitam explorar o universo insinuado na tela. Sem que tenhamos ainda chegado ao fim do semestre, Era uma Vez na Anatolia é, desde já, um dos grandes lançamentos do ano.