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Opinião|Era uma Vez na Anatolia

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Era uma Vez na Anatolia, do turco Nuri Bilge Ceylan, é uma espécie de objeto cinematográfico não identificado, destoante em meio à banalidade dominante. Ele é longo (150 minutos) ao invés de sintético, como recomenda o manual do comércio. Sua trama é rarefeita e não explícita. Seu tempo é lento e não acelerado. Entrega sua história aos poucos e não por completo. Trabalha mais nas lacunas do que no preenchimento completo de todos os espaços. Para resumir: é um filmaço, que pede um espectador à altura do seu grau de elaboração.

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Passa-se, em sua quase totalidade, na planície semidesértica onde um grupo de homens busca um cadáver enterrado. Há um crime, e isso fica claro desde o início. Nos carros viajam os dois homens que já confessaram ter matado alguém. Viajam também policiais, um médico, um promotor, um militar, dois cavadores com suas pás. O criminoso confesso (sim, porque um dos dois toma à frente) é um homem de rosto trágico. Ele diz não se lembrar direito do lugar onde enterrou o corpo, apenas que foi à sombra de uma "árvore redonda". A busca atravessa a madrugada.

Enquanto isso, os homens conversam. Falam do que se fala quando é preciso matar o tempo. Falam sobre a próstata do promotor, que deve estar com problemas porque ele pede a toda hora que o carro pare para fazer xixi. Falam da vida. Numa parada, o promotor conta ao médico uma estranha história, a de uma mulher jovem e "magnífica", que disse que ia morrer num determinado dia e numa determinada hora. E isso de fato aconteceu. O médico busca uma explicação racional para o fato. Mas a história fica assim, jogada, entre parênteses, para fazer sentido, talvez, já mais para o final.

Há também a parada num vilarejo situado no meio do nada, quando a caravana é recebida pelo líder local. Ele dá de comer e de beber a todos. Quem serve a refeição é a filha do chefe, moça de rosto lindo. Quando ela dá comida a um dos supostos criminosos, ele chora. Por quê? Não se sabe. Mas pode-se conjeturar. E guardar a informação para depois. A beleza excessiva causa um sentimento tanto de deslumbramento quanto de tristeza. Mas essa é uma interpretação e um dos subtemas de Anatolia: qual o espaço da beleza nesse mundo rude?

Só isso? Não, muito mais. Há desdobramentos que convém não revelar, mesmo porque o mais interessante do filme é esse processo mesmo de descoberta. Em seu verso mais popular, Antonio Machado dizia que "No hay camino, se hace camino al andar". O "caminante", no caso o espectador, terá de ir fazendo o seu próprio percurso no entendimento da história à medida que se deixar tocar por ela. E ao mobilizar sua sensibilidade e inteligência em busca dessas frestas abertas pela narrativa e que são em si extremamente reveladoras.

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Resta dizer que a história, em aparência banal e contada de modo lacunar, ambiciona algo muito maior do que aparenta. Ela é uma espécie de iceberg, que revela apenas parte relativamente pequena do seu todo, o mais importante ficando abaixo da linha d'água. Era o que Hemingway recomendava aos candidatos a escritor. O grande texto expõe de maneira imediata apenas parcela da sua real dimensão. O resto está nas entrelinhas, submerso, como um convite a ser decodificado e preenchido pelo leitor/intérprete. Com o grande cinema passa-se o mesmo. Ele exige um espectador ativo, participante, imaginativo, disposto a encontrar em si as ferramentas que lhe permitam explorar o universo insinuado na tela. Sem que tenhamos ainda chegado ao fim do semestre, Era uma Vez na Anatolia é, desde já, um dos grandes lançamentos do ano.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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