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Cinema, cultura & afins

Opinião|Ensaio brilhante sobre a condição humana

A história parece simples, banal. Uma mulher vai comprar um par de sapatos e, na saída da loja, é assaltada. Mais tarde, um homem encontra a carteira com documentos e cartões de crédito e a entrega à polícia. A carteira volta à sua dona, que telefona agradecendo a quem a encontrou e devolveu. Mesmo que não queira, o homem torna-se obcecado pela mulher e tenta assediá-la por todos os meios. Eis aí. É só isso? É isso e muito mais. Na verdade, há um mundo inteiro na maneira como Alain Resnais toma esse argumento, tirado de um livro de Christian Gailly, L"Incident.

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

A maneira (a forma) como lê essa trama pode surpreender um pouco o espectador. Os personagens podem ter reações inesperadas e contraditórias. Georges Palet (André Dussollier) é um burguês bem posto na vida, alguém elegante, mas cujo comportamento pode chegar à truculência por motivos que ignoramos. Margueritte Muir (Sabine Azéma) é uma dentista que apenas deseja se livrar de um homem incômodo e insistente, mas seu propósito não parece tão firme quanto ela crê. E a presença de uma amiga e colega, a bela Emmanuelle Devos, apenas aumenta a eletricidade da situação.

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Não se trata de uma ciranda amorosa comum. Resnais diz que pretende mimetizar, no clima do filme, o estilo de Gailly, considerado um escritor minimalista e original. Usa procedimentos de linguagem próprios. Por exemplo, pode interromper uma frase de diálogo ao meio, sem ao menos colocar reticências para prevenir o leitor da quebra. A vida não tem reticências.

Resnais incorpora essa descontinuidade ao comportamento dos personagens. Eles surpreendem. Parecem estranhos e próximos a nós. Porque também vivemos num mundo psicológico fragmentado, sujeito a desníveis brutais, a frases truncadas, a propósitos esquizofrênicos e pouco coerentes.

Resnais, seguindo Gailly, se previne contra qualquer tipo de psicologia. Nada sabemos do passado de Georges, nem daquilo que poderia levá-lo a agir como age. A história nos desabitua de um reflexo genético, o de procurar no passado a explicação automática para o presente, numa relação de causa e efeito. Tudo é mais complexo, mas fingimos não saber. O cinema, em especial, se presta a essa supersimplificação da vida, apresentando-a sob a forma do determinismo.

Ervas Daninhas vai na direção oposta. Temos aqui o acontecer em sua forma bruta. Em meio à extrema inventividade formal de Resnais, o que se confrontam são os dramas do desejo e do envelhecimento, os paradoxos da rotina como forma de segurança, que deve ser quebrada para se tornar suportável. Enfim, alguns dilemas insolúveis da condição humana, colocados na tela com o rigor obstinado de um Beckett, com quem Resnais, de alguma forma, parece dialogar.

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Posto sob a forma de paradoxos, Ervas Daninhas não comporta uma explicação linear. Propõe-se como enigma, pleno de sentidos a serem descobertos. Para nossa alegria e estímulo.

(Caderno 2, 11/1/10)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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