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Opinião|Em nome do pai

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Em O Passageiro - Segredos de Adulto, Flávio Tambellini aborda a difícil questão do pai. Em seu segundo longa, depois de Bufo & Spallanzani, adaptado de Rubem Fonseca, Tambellini se arrisca num trabalho mais pessoal. Ao invés de acomodar-se ao universo policial do escritor carioca tenta uma temática mais íntima e, ao mesmo tempo, que diz respeito a uma preocupação comum a muita gente.

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Não se sabe (a não ser se perguntarmos a ele) se o diretor teve problemas com seu pai, o também cineasta Flávio Tambellini, falecido há 30 anos. Mas, quer saber?, no fundo isso pouco importa, pois a obra deve dizer sua mensagem, sem a ajuda da palavra do realizador. E os problemas pessoais de cada um só adquirem status de arte se transcenderem a sua circunstância particular e puderem falar a todos e a qualquer um de nós.

Nesse sentido, a trama de O Passageiro cumpre bem a sua função. Fala de algo que, se não aconteceu com todos nós, bem poderia ter acontecido e essa possibilidade basta para que tenha verossimilhança. No caso, a experiência é ter sido filho de um pai exuberante, de caráter muito forte, mas cuja imagem no fundo nos desagrada. E, circunstância adicional, esse pai desaparece muito cedo, de modo que o filho se mostra incapaz de, por si só, pelo desenrolar natural da vida, com suas reavaliações contínuas, retificar a imagem que dele ficou.

O pai, vivido Antonio Calloni, é um ricaço meio cafajeste, que só pensa em dinheiro. Um dia ele é morto num assalto e o adolescente Antônio (Bernardo Marinho, em sua estréia na tela) terá de se virar com a imagem negativa do pai, a convivência com uma mãe depressiva (Giulia Gam), e duas garotas interessantes, Adriana (Luana Carvalho) e Cristina (Luíza Mariani). Além, claro, de uma misteriosa mulher madura, Carmem (Carolina Ferraz), que aparece mais para o meio da história.

Tambellini mostra um jeito suave de filmar. Faz a sua história deslizar com elegância, sem pressa, sem precipitação. Seu ritmo é o do adolescente que retrata, que precisa compreender uma série de coisas sobre si mesmo e, para isso, precisa descobrir outro tanto sobre o pai que o deixou cedo demais. Antônio segue seu ritmo e não consegue estabelecer relações nem com a mãe nem com as garotas que o rodeiam. Tudo parece um pouco difícil, hesitante, reticente, cada passo sendo ensaiado e dado com todo o cuidado, tateando o terreno, por assim dizer. É assim mesmo na adolescência, ou pelo menos em certas adolescências. No caso de Antônio, na ausência de um modelo, ou na presença de um modelo visto como insuficiente, o que vem a dar no mesmo. O bom da coisa é que o ritmo e a linguagem do filme, bem com a boa interpretação do estreante que faz o papel principal, seguem essa hesitação básica.

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Não se pode, no entanto, evitar certa sensação de frieza. Como se o diretor, ao tentar controlar a temperatura da trama, tivesse forçado um pouco a mão. Assim, os passos da descoberta de Antônio não parecem dispostos em progressão dramática das mais envolventes. E alguns personagens, como a mãe, não alcançam um desenvolvimento muito convincente. Há sempre algo forçado na presença em cena de Giulia Gam, como se ela não estivesse à vontade na pele de mulher tão passiva.

Não se trata de caso isolado. Se os personagens individualmente parecem interessantes, não conseguem produzir a química necessária quando interagem. Há assim, um subproduto, que talvez não seja o desejado, de uma solidão intrínseca de todos os que fazem parte da trama. E, de certa forma, essa solidão não se dissipa nem mesmo quando eles se por fim se encontram. E nem quando se encontram na, por definição, mais quente das situações, o sexo. Assim, num mundo de seres autônomos e infelizes, fica difícil celebrar a arte do encontro, que deveria ser a culminação de uma história que afinal faz parte de uma trama de viagem interior e de descoberta de si.

Desse modo, o rito de passagem de Antônio parece no fundo muito insuficiente, sem poesia e sem qualquer traço de epifania. Se o tratamento dos problemas é correto, falta a ousadia de um salto, de uma transgressão de pensamento que se traduziria numa transgressão cinematográfica. Admira-se, portanto, o trabalho bem-feito, e o progresso realizado em relação ao primeiro filme. Ao mesmo tempo, ficamos torcendo por uma situação mais extrema, uma abertura ao risco que acaba não aparecendo. Terminamos o filme apaziguados, mas ainda um pouco famintos - de sentido e de ousadia cinematográfica

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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