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Opinião|Em homenagem às irmãs *

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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Diz o diretor Marco Bellocchio que Irmãs Jamais é "um filme por acaso". Não parece. Mas a observação procede. São necessárias duas palavras sobre seu processo de realização. Há muitos anos, Bellocchio comanda em sua terra natal, Bobbio, na província de Piacenza, um laboratório chamado Fare Cinema (Fazer Cinema). Esses workshops têm lugar sempre durante o verão. São uma espécie de atividade de férias.

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Bellocchio foi rodando os episódios tendo seus próprios parentes como personagens - sua filha menor, Elena, o filho Pier Giorgio, as irmãs Letizia e Maria Luisa. Também participam atores e atrizes amigos, como Alba Rohrwacher, Donatella Finochiaro e Gianni Schicchi Gabrieli.

Há um aspecto fragmentário nos seis episódios, mas também fios que os mantêm solidamente unidos. A menina Elena vive com as tias, em Bobbio. A mãe da garota, Sara (Donatella Finocchiaro), tenta carreira de atriz profissional e está sempre em viagem. Aparece e desaparece. Até que, num dos episódios, resolve levar a menina para morar com ela, em Milão. Mas, para isso, precisa de dinheiro para alugar uma casa maior. O irmão, Giorgio (Pier Giorgio Bellocchio) vive em crise de vocação. Acha-se destinado às artes, mas é obrigado a sobreviver de formas diversas, e muitas vezes confusas. Abre uma joalheria com a namorada nova, mas a coisa não vai adiante. Sempre necessitado de dinheiro, mete-se com tipos suspeitos, que não hesitam persegui-lo até o reduto, em Bobbio, para cobrar a dívida. As duas velhas tias, Letizia (Letizia Bellocchio) e Maria Luisa (Maria Luisa Bellocchio), solteironas, são o esteio da família.

Enfim, é uma saga familiar, bastante real, bastante ficcional. Como disse Bellocchio, as pessoas interpretam a si mesmas, mas o fazem sempre com um deslocamento ficcional em relação aos fatos efetivamente vividos. Sobra algo de muito real, um núcleo duro da narrativa: a homenagem que Marco Bellocchio, um dos mais consagrados artistas italianos, faz às suas irmãs, que renunciaram à vida para servir de esteio à família. Não por acaso, ele chama a essas irmãs da renúncia de Mai (nunca, jamais).

Esse "fio profundo" que une episódios em aparência desemparelhados, é a visão de Bellocchio sobre a família. Visão que evolui desde o cáustico primeiro filme, de Punhos Cerrados (1965) até este crítico, porém compreensivo, Irmãs Jamais (2008). É um signo de maturidade do artista. Não por acaso, alguns fotogramas de De Punhos Cerrados imiscuem-se entre as imagens modernas de Irmãs Jamais. Como se fossem comentários do passado intrometendo-se no presente, marcando dois registros diversos com relação à família. O jovem Bellocchio de 1965 tentava esmurrar. Era um raivoso. O Bellocchio maduro de 2008 busca compreender. É um sábio.

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E há muito que compreender neste filme que ganha organicidade apenas a posteriori. Por exemplo, a dialética entre a pequena Itália do interior (Bobbio) e a cidade grande, Milão, com suas promessas e respectivos preços a pagar. Todos os provincianos buscam a metrópole, mas voltam à província como em busca de um abrigo indefinível. É como um útero. Mas lá também não podem ficar (são os casos de Sara e Giorgio), pois uma promessa (talvez ilusória) de vida maior os chama. Situam-se, assim, numa espécie de não-lugar angustiante. Restam as tias, os chamados pilares da família, com sua bondade, vidas restritas e a preocupação em aumentar a capela funerária dos Mai, para que, no futuro, não falte lugar para ninguém. Utopia da família unida, que permanece unida mesmo após a morte. Patético e comovente a um tempo.

Irmãs Jamais é um filme cheio de sutilezas e pequenas surpresas, inclusive em seu desfecho, poético e nada previsível. Bellocchio é autor de alguns dos raros grandes filmes italianos dos últimos anos, como Vincere, Bom Dia, Noite e A Bela que Dorme (com estreia prometida para maio no Brasil). Filmes políticos, operísticos, profundos e duradouros na memória afetivo-intelectual do cinéfilo. Irmãs Jamais é uma pequena experiência intimista, espécie de intermezzo numa carreira já longa e brilhante. Esse interlúdio familiar não é menos lúcido e emocionante que seus grandes filmes. Uma pequena obra-prima.

* Acho que Irmãs Jamais já foi varrido do circuito. Fica o registro, nesta crítica inédita. Se sair em DVD, não deixem de ver. 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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