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Opinião|Em busca da vida

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Qual o custo do desenvolvimento? Esse pode ser bem o tema de Em Busca da Vida, de Jia Zhang-Ke, o mais notável diretor da nova geração chinesa. Ele escolhe uma locação privilegiada para estudar essa questão, a represa das Três Gargantas, gigantesca obra já sonhada desde os tempos de Mao-tsé Tung e finalmente realizada pela nova ordem 'liberal' do país. A hidrelétrica é necessária, mas qual o seu custo? E Zhang-Ke não está falando em questões orçamentárias.

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Esses 'custos' implicam o desaparecimento de cidades milenares de um dia para o outro, situadas em terras que serão inundadas. Implicam também a dispersão de pessoas que, não tendo mais onde morar ou no que trabalhar, serão realocadas para outras partes do país. Assim, é da morte que fala esse belo e sensível filme. Morte cultural, morte de relações pessoais.

Zhang-Ke toma dois casos em particular. O de um trabalhador que chega a uma cidade ainda em demolição para reencontrar a mulher que o abandonou 16 anos atrás e conhecer a filha, que nunca viu. No outro, uma enfermeira tenta rever o marido, sumido há dois anos.

Esse é um filme de silêncios, pequenas cenas muito bem construídas e, sim, um extraordinário rigor de filmagem. Não se encontra nele uma única imagem banal, como se Zhang-Ke desejasse depurá-lo de qualquer lugar-comum cinematográfico. Acontece, por exemplo, de um diálogo começar com os dois personagens e a câmera 'passear' pelo ambiente, ou se deter em outros rostos, evitando o clichê dos planos-contraplanos. Impõe-se um ritmo lento, sem ser solene, na maneira como as imagens se encadeiam e nos enquadramentos se sucedem. Uma emoção serena se desprende dessas imagens.

Sente-se nelas a imersão do artista no ambiente que deseja retratar. Ou, talvez, mais do que retratar, Zhang-Ke aspire compreender. A câmera, de inegável tom documental, investiga, indaga, tenta entender a motivação, os gestos daqueles personagens. Desse modo, eles ganham vida, densidade, espessura, verdade.

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Jia Zhang-Ke é um daqueles casos infelizmente comuns em sociedades autoritárias: tem mais prestígio fora do que dentro do seu próprio país. No exterior, tem participados dos mais importantes festivais. Na China, seus filmes são proibidos. Venceu o Festival de Veneza do ano passado com este Em Busca da Vida, e já havia participado do mesmo evento com Plataforma e O Mundo. Em todos esses trabalhos nota-se uma linha comum de interesse - refletir sobre as transformações do mundo moderno e suas repercussões na China pós-maoísta, economicamente mais aberta, mas nem por isso menos controladora da vida dos seus habitantes.

A geração anterior de cineastas chineses trabalhava de outra maneira. Gente como Zhang Yimou e Chen Kaige buscava na história milenar da China referências para pensar o país na modernidade. Filmes como Lanternas Vermelhas e Deus, Minha Concubina seduziram o Ocidente com seu visual suntuoso e seu poder alegórico. Zhang-Ke é mais direto. Instala-se no espaço contemporâneo e reflete a partir dele mesmo.

Nem por isso se pode dizer que opte por um realismo estrito. Mesmo neste Em Busca da Vida, filme tão colado ao real, ele se reserva momentos 'poéticos', que funcionam como licenças estilísticas ou metáforas - um prédio em demolição que levanta vôo como se fosse um foguete, ou um equilibrista que passeia num fio sobre o abismo entre os escombros. Esses momentos não são apenas 'estéticos', no sentido banal do termo. Não estão lá para 'embelezar' a história, mas para criar bolsões de sentido nesse retrato sem retoques da China contemporânea.

(Estadão, Caderno 2, 20/7/07)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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