Outro exemplo é O Equilibrista, de James March, vencedor do Oscar de documentário de 2009. O filme, realizado com imagens captadas em várias épocas, reconstrói a trajetória de Philippe Petit, um mestre da corda bamba, que se notabilizou em seu país por ter andado entre as torres da Catedral de Notre-Dame. Mas esse feito parece café pequeno comparado ao que viria depois: Petit conseguiu estender sua corda entre os dois prédios do World Trade Center e percorreu o caminho do vão livre oito vezes, para pasmo dos nova-iorquinos.
A façanha teve caráter de uma operação de guerra, com o prédio sendo invadido à noite para que o equipamento fosse montado. Petit gosta dos desafios radicais. Estranha quando lhe perguntam "por que você faz isso?", pois a resposta lhe parece óbvia: é para provar-se. Lembra a do alpinista que primeiro escalou o Everest. Por que arriscou-se tanto? "Ora, porque a montanha estava lá", respondeu. Há, nesse francês, alguma coisa de Werner Herzog, o cineasta de Aguirre, a Cólera dos Deuses e Fitzcarraldo. Esse impulso em direção à proeza, o risco que flerta com a morte. O filme todo se desenvolve como um thriller, envolvente ao extremo.
Entre os participantes nacionais, o recorte provocativo também se impõe. É o caso de Corumbiara, de Vincent Carelli, relato pouco convencional do massacre dos índios numa gleba em Rondônia, nos anos 1980. Carelli e sua equipe saíram atrás de índios remanescentes, registrando a busca com sua câmera, inclusive o encontro com alguns raros sobreviventes, que falavam uma linguagem desconhecida. As imagens eram para registro próprio e ele nem havia pensado em delas fazer um documentário. Este surge a posteriori. E tem o tom da história se fazendo à vista do espectador, com fluência, montando o quebra-cabeças de etnias perdidas - e que escapam da extinção por milagre. Junto com Terra Vermelha, de Marco Bechis, e Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, este Corumbiara coloca a questão indígena em patamar diferente, sem as ilusões do bom-mocismo rousseauniano ou o facilitário das narrativas lineares.
Em outra chave, não menos contundente, aparece Garapa, o esperado documentário de José Padilha. Rodado inteiramente em preto-e-branco, o filme baseia-se numa frase de Josué de Castro, autor do clássico Geografia da Fome. Existem, segundo Josué, duas maneiras de uma pessoa morrer de fome: ou não comer nada, ou alimentar-se de maneira constante com nutrientes inadequados. A partir dessa premissa, Padilha segue o cotidiano de três famílias cearenses, à beira da desnutrição apesar dos programas como o Fome Zero. Sobrevivem, mas no limite. As imagens são incômodas ao extremo. No preto-e-branco granulado, vê-se gente lutando pela vida no dia a dia, em condições precárias, mulheres tentando criar fieiras de filhos em meio à falta absoluta de saneamento básico e ainda tendo de enfrentar o alcoolismo dos maridos. Segundo dados da ONU, nada menos de 11 milhões de brasileiros vivem nessas condições. Esse é o drama atual.
Já Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski, volta aos anos 70 para tocar em tema complicado - a colaboração de empresários paulistas com a polícia e o exército na repressão aos contestadores do regime. A figura exemplar é o dinamarquês Henning Albert Boilesen (1916- 1971), que imigrou para o Brasil, tornou-se presidente do grupo Ultragás e foi executado por militantes de esquerda por sua participação na Operação Bandeirantes. O personagem é flagrado em sua complexidade e toda uma época de violência e radicalismo político lhe serve como moldura. Um dos mais contundentes documentários sobre os chamados anos de chumbo no Brasil.
(Caderno 2, 25/3/09)