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Opinião|É Tudo Verdade: conversa de poetas

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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O É Tudo Verdade é um grande festival que mantém as vantagens dos festivais menores, mais familiares. Nele, pode-se ainda tomar um café com os realizadores, sem que seja preciso vencer várias barreiras de assessores, como acontece em outras eventos do gênero. Digo isso porque cheguei um pouco adiantado para o filme das 13h, encontrei no café do Cinearte o diretor Walter Carvalho e ficamos papeando até a hora do filme. Jogando conversa fora mesmo, nada de entrevista. E ele me dizia de sua admiração pelo festival, cometendo a hipérbole de que era documentarista apenas para poder apresentar seus filmes no É Tudo Verdade. Falamos de cinema e falamos de poesia. No fim da sessão, voltamos a conversar, quando fui cumprimentá-lo pela beleza do doc dedicado ao poeta Armando Freitas Filho.

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Walter, leitor voraz de poesia, disse que tinha curiosidade em conhecer o cotidiano de um poeta. Pega ônibus? Vai ao banco? Espera a inspiração para escrever? Sim, há tudo isso e muito mais em Manter a Linha da Cordilheira sem o Desmaio na Planície. Há, em especial, aquilo que hoje em dia menos se busca no contato com um artista - o modo de produção de sua arte. Suas ideias, seus sentimentos, suas inquietações. De modo que, ao privilegiar o processo de produção artística, este se torna um filme de exceção.

Walter filma o poeta em sua casa, em seu escritório, fotografa seus cadernos de esboços, conversa sobre a inquietação do processo artístico. Vale-se de um ponto positivo - o temperamento de Armando Freitas Filho, profundo e bem humorado, intenso e fluente, apesar da pequena gagueira que acaba sendo um charme adicional em sua fala. Há uma sequência que acho não funciona tão bem, o encontro de Armando com o também poeta Ferreira Gullar. Diminuiu a concentração do filme, mesmo porque Gullar chama os holofotes para si, quando o personagem no qual o público está interessado é outro.

E há o momento de intensidade máxima, quando ele se recorda do relacionamento com a poeta carioca Ana Cristina César, que se suicidou em 1983. Armando recebeu o último telefonema de Ana Cristina, que pedia que ele fosse ao seu encontro, mas o poeta estava resfriado e não foi.

Há momentos de graça também, como aquele em que o poeta recorda sua juventude, quando os rapazes iam aos bailes vestindo o chamado "suporte atlético" por baixo da cueca, para disfarçar possíveis ereções durante a dança. Quem foi jovem naquele tempo sabe o que foi isso. E ele o evoca com infinita graça.

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Armando fala também de suas devoções e influências. O dilema entre Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, que ele acaba por resolver com a frase definitiva: "Drummond é deus!". Lembra-se de um fato simbólico. Morto Drummond, em 1987, Armando foi ao seu velório. Chegou cedo, antes até do corpo, quando a funcionária do cemitério estava ainda colocando o nome do finado na sala onde haveria o velório. Chegou com aquele saco de letrinhas brancas e foi compondo o nome. Escreveu Drumond, com um "M" só. Armando a corrigiu: "são dois MMs". "Parecia lógico que o corpo de um escritor fosse precedido pelas palavras que compõem seu nome", diz. E, ao menos, ter seu nome grafado de maneira correta. 

No final da sessão, ainda troquei umas palavras com Walter, que conversava com o também cineasta Roberto Berliner (que apresenta seu belo curta Esperando Helena, no festival). Contei a Walter que, por pura coincidência, na véspera havia tirado da prateleira um dos livros que mais amo de Carlos Drummond, A Rosa do Povo, e comecei a lê-lo antes de dormir. O Brasil de hoje exige doses maciças de poesia (e também de música, arte e amizade) para ser suportado. E Walter se espantou com o acaso. Disse a ele que Drummond era o "meu" poeta, sem qualquer rivalidade, embora colocando João Cabral no mesmo nível de realização artística. "Mas ache também um lugar para Manuel Bandeira", me recomendou Walter. É claro que acho. Três grandes: Bandeira, Drummond, Cabral. Por que escolher, se podemos ter os três?

E, agora, partir à descoberta de Armando Freitas Filho.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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