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Opinião|Diário de Veneza: Martone cria painel histórico do Risorgimento

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Ao contrário dos dois concorrentes italianos anteriores - La Passione e La Pecora Nera - que tratam de temas individuais, Noi Credevamo (Nós Acreditamos), de Mario Martone, se dedica à desmesurada tarefa de traçar um amplo painel histórico. Através de três personagens ficcionais, Domenico, Angelo e Salvatore, Martone recria as lutas,tensões e contradições presentes na raiz da unificação italiana - o Risorgimento - que completa 150 anos. O filme adota um tom entre o realista e o operístico e foi recebido com aplausos moderados na sessão de imprensa. Na entrevista coletiva, a equipe da produção foi acolhida por uma plateia entusiasmada. A produção parece, enfim, despertar reações desencontradas, como costuma acontecer com as representações de períodos históricos.

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O próprio Martone (diretor de A Morte de um Matemático Napolitano) está consciente da enormidade da tarefa que se propôs. As três horas e 24 minutos de duração não parecem suficientes para esclarecer um processo histórico com muitos pontos ainda obscuros, como ele mesmo admite. O filme será lançado nos cinemas comerciais com essa mesma duração e, na televisão, sob a forma de minissérie.

O excesso de personagens parece ser um problema. A mistura de personagens reais e ficcionais, outro. Assim, aos ficctícios Domenico, Angelo e Salvatore, se juntam nomes conhecidos dos livros de história como Mazzini, Cavour, Crispi e Garibaldi. Martone sustenta que se valeu de personagens imaginários para contar a grande aventura do Risorgimento com maior liberdade narrativa, mas que estes foram baseado em pessoas que de fato viveram, lutaram e sofreram aqueles episódios.

As fontes eram boas: "Aqueles revolucionários todos escreviam sem cessar e, por isso, nos legaram uma massa imensa de documentos, que foram escrupulosamente estudados para construir o roteiro", diz. Muita informação, mas talvez nenhuma certeza. O roteirista Giancarlo de Cataldo afirma que há várias teses sobre o Risorgimento e que, provavelmente, nenhuma delas conta a verdade absoluta dos fatos. "Propusemos uma interpretação, aberta o suficiente para que os espectadores tirem suas próprias conclusões", disse Cataldo.

A história começa com a repressão da monarquia dos Bourbon em 1828 e termina com a criação da Itália unificada no tempo de Garibaldi. Nesse período, o espectador é arrastado por um labirinto de manobras de bastidores, batalhas, atos de heroísmo e traição, atentados terroristas, cárcere, cabeças cortadas na guilhotina. Som e fúria da revolução, numa obra de narrativa clássica, bem fotografada e bem interpretada. Com elenco de primeira (Luigi Lo Cascio, Toni Servillo, Valerio Binasco, entre outros), Noi Credevamo segue o modelo do filme histórico, porém sem cheiro de mofo e, sobretudo, sem ar de obra oficial, embora produzido pela RAI.

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Martone, aliás, foi questionado sobre a linguagem adotada em seu filme, que um jornalista classificou de "televisiva". Sua resposta: "Não faço cinema com esteticismo formal, não acredito que esse filme seja feito de modo diverso dos meus outros trabalhos." Contra o que julga ser um preconceito contra a televisão, cita Roberto Rossellini que, no auge de sua carreira, deixou o cinema e foi fazer seus filmes para televisão. É um exemplo, talvez o mais ilustre de como essa fronteira se torna cada vez mais artificial.

De qualquer forma, Noi Credevamo ainda vai provocar muita polêmica na Itália. Não que o filme a busque. Pelo contrário. Uma jornalista italiana comentou que o problema do filme é justamente ele "não ter um ponto de vista claro". Mas, mesmo essa abertura, ou essa imparcialidade, não deixam de ser matéria de discussão. O filme, sim, se inclina em favor daqueles jovens que lutaram muitas vezes por causas que não compreendiam muito bem. Acontece que essas lutas se repetiram ao longo da história italiana e o Risorgimento parece estar na origem de questões ainda insolúveis, como a tendência do povo ao autoritarismo e a divisão insanável da nação entre Norte e Sul. "O que fica de certo em tudo isso é o idealismo, a utopia de construir um país, que foi o sonho daqueles jovens", diz Martone.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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