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Opinião|Diário de Brasília (4). Mais 'Fome'

 

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
 Foto: Estadão

 

BRASÍLIA. Fome, de Cristiano Burlan, foi o segundo longa-metragem apresentado no Festival de Brasília de 2015. Burlan é conhecido por seu duro documentário Mataram Meu Irmão, premiado em vários festivais. Neste trabalho, lança seu olhar sobre os moradores de rua. Ou melhor, sobre "um" morador de rua, representado por Jean-Claude Bernardet, um dos maiores estudiosos do cinema brasileiro, professor da USP, e que agora vem se dedicando com afinco à carreira de ator. Bernardet, ou melhor, o sem-teto, empurra seu carrinho pelas ruas de uma São Paulo, hostil, áspera e às vezes até mesmo bela, fotografada em registro preto e branco. Uma nota: se um dia demolirem mesmo o Minhocão, os diretores que filmam em São Paulo ficarão órfãos. Não existe signo maior do caráter inóspito da metrópole. É, por assim dizer, seu anticartão postal.

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Fome destaca-se pela qualidade de tratamento do tema. Não cai na complacência cristã de outras abordagens e, por isso mesmo, registra sem contemplação o profundo mal-estar e o incômodo da "situação de rua", como esta é chamada pelos órgãos oficiais. Em padrão estético bastante despojado, Burlan diz que o longa custou R$ 15 mil e, apesar disso, pode ser bastante sofisticado, como na captação dos sons da cidade. "Cada filme tem a sua necessidade estética é um filme de rua, no qual a poluição sonora tem de estar presente", diz.

Neste, como em outros filmes em que atua o estudioso, há, também, um "momento Jean-Claude", quando a carismática persona do ensaísta se sobrepõe ao papel representado. É, no exemplo mais flagrante, quando o morador de rua vê-se abordado por um ex-aluno (o crítico Francis Vogner), que o reconhece. Travam, então, um diálogo ácido, um acerto de contas em que ideias interessantes são discutidas. Sobre a "velha" e a "nova" crítica. Sobre o cinema e sobre a vida. E sobre a maneira como ambos se articulam. Ou não. Na contraluz, o discurso sobre a morte do pai, ou o abismo de gerações. Ou a agressividade retroativa que gera a admiração na relação entre mestre e discípulo. Isso tudo, o que é bem interessante, mas desanda na dramaturgia do filme.

Este não é a única passagem em que uma espécie de meta-reflexão se sobrepõe à dramaturgia. Há também uma moça que faz seu mestrado sobre moradores de rua e tenta entrevistar o personagem. Ele resiste. E canta para ela uma canção francesa (não esqueçamos que nosso personagem é francês, nascido na Bélgica). Mais tarde, ela irá desabafar com aquele que talvez seja seu orientador de tese dizendo que, de fato, não estaria ajudando o morador de rua, mas apenas usando-o como sujeito para seu trabalho acadêmico. E, talvez, ainda mais profundamente, para aplacar sua consciência culpada. Consciência "burguesa", como o próprio Jean-Claude se expressa, ao insultar motoristas parados no semáforo em seus carros de vidros fechados. Ou a recusar um resto de comida de um casal que acaba de sair de um restaurante do Centro. Cenas comuns na metrópole do medo e da culpa.

Mas o longa tem momentos altos, como na cena em que o sem-teto tenta conduzir seu carrinho pelo canteiro central, debaixo de um viaduto, rodeado por um inferno de carros e ruídos. Nesse momento, ele desaba e olha dramaticamente em frente, como se a metrópole houvesse vencido, por fim, o corpo frágil de alguém que havia resistido com tanta dignidade até o fim. "Acho essa cena perturbadora, resultado de forte emoção do ator, mas também dirigida de forma muito racional. Talvez seja a cena que eu considere como a mais forte nos filmes em que atuei", diz Jean-Claude. Curtas. Dois bons curtas, também, nesta segunda noite. Tarântula, de Aly Muritiba, usa a atmosfera de suspense para contar a história de duas garotas irmãs, que recusam (e de maneira muito violenta) a presença do padrasto. Em Rapsódia para o Homem Negro, Gabriel Martins se vale de lendas afro-brasileiras para estabelecer relações com a violência e discriminação atual contra os negros. Os dois muito bem construídos e criativos.

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(Este texto seria para a versão impressa, porém não foi aproveitado. Está mais completo que o anterior, contendo intervenções dos autores no debate, do qual participei)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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