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Cinema, cultura & afins

Opinião|Diário da Mostra 2014. Cássia Eller, Luhli e Lucina, mulheres da contracultura

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

 

Hoje é dia de dois documentários sobre personagens da música e da cultura brasileira. Yorimatã, de Rafael Saar, e Cássia, de Paulo Henrique Fontenelle, passam em seguida na sala 2 Espaço Itaú de Cinema, no Shopping Frei Caneca. Yorimatã, às 15h, Cássia, às 17h20. São filmes que se comunicam, embora, naturalmente, não tenham sido feitos com essa intenção.

 Foto: Estadão

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Yorimatã é, em princípio, um documentário sobre a dupla de cantoras e compositoras Luhli e Lucina, personagens importantes do ambiente contracultural brasileiro na passagem dos anos 1960 para os 1970. Gravaram discos, fizeram shows, tiveram músicas gravadas por Ney Matogrosso (que dá depoimento no filme, assim como outras personalidades musicais da importância de Gilberto Gil). Em certo momento, as duas, que viviam no Rio, vieram a São Paulo participar da experiência do Teatro Lira Paulistana, onde conviveram com Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé. No auge da carreira, foram obrigadas a voltar ao Rio por causa da doença do companheiro.

Há anos, Luhli e Lucina viviam relacionamento a três com o fotógrafo Luiz Fernando Borges da Fonseca, que por ocasião da fase Lira Paulistana das duas mulheres descobriu ter um câncer terminal e resolveu terminar seus dias no sítio em Mangaratiba onde foram felizes. Lá, haviam estabelecido uma vida em comunidade, ele, com as mulheres e os filhos. Era, como diz uma delas em depoimento, "a nossa fase Novos Baianos". Evocando, desse modo, a experiência comunitária vivida pelos baianos, outras celebridades e muitos outros anônimos no auge da temporada hippie brasileira. Paz e amor, sim senhor, além do contato com a natureza e repúdio à sociedade "burguesa".

O filme que narra essa trajetória é bastante bom. Recheado de músicas, apresenta a dupla a quem não a conhece (caso provável das gerações mais jovens) e reaviva a memória dos que a cultivaram durante os anos loucos. Por sorte, Luiz Fernando era fotógrafo e também gostava de registrar o cotidiano em filmes super-8. Esse acaso feliz garante rico material de arquivo ao documentário, tanto em fotos como em imagens em movimento, cotejando as duas jovens nos anos 70 com os depoimentos das duas senhoras em que agora se transformaram. Muito bom.

Cássia, de Paulo Henrique Fontenelle, evoca a figura de Cássia Eller, outra geração contestadora, outras atitudes, outra música. Cássia surge na cena roqueira nos anos 1980- 1990. Sua música era focada no rock (mas era muito boa quando cantava canções brasileiras) e seu tipo de comportamento rebelde mais centrado na afirmação individual que na dimensão grupal. Também seguiu trajetória de álcool e drogas e acabou morrendo cedo, em 2001, de um enfarte, com 39 anos. Parte da imprensa relatou morte por overdose, quando não havia qualquer indício disso. O laudo da autópsia mostrou que Cássia estava "limpa" quando morreu. Esse fato é largamente comentado no filme como manifestação de preconceito em relação à cantora e roqueiros em geral.

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O fato é que Cássia teve passagem meteórica pela vida. Se Luhli e Lucina sobreviveram aos excessos da juventude e hoje parecem senhoras serenas e em paz com a vida, Cássia consumiu sua existência em pouco tempo.

No terço final do filme, como o anterior pontuado por muita música e muito material de arquivo, discute-se um legado importante de Cássia Eller. Segundo seu desejo expresso, a guarda do seu filho Francisco ficou com a companheira, Eugênia. Houve uma batalha judicial, na qual o avô do menino reivindicava a guarda, mas esta permaneceu mesmo com Eugênia, decisão importante em época moralmente regressiva como a atual.

Esses dois documentário falam, e muito, de música, pois esta, afinal, era a forma de expressão de suas personagens. Mas trazem também as modalidades de fricção dessas personagens com a mentalidade do seu tempo. Por acaso, tanto Luhli e Lucinda como Cássia Eller questionaram a modalidade tradicional de família e viveram de outra forma, não convencional. Conforme diz a canção de Milton Nascimento, qualquer maneira de amar vale a pena e há mais de um jeito de ser feliz, viver em sociedade, formar família e criar filhos, ao contrário do que acredita o pensamento único dominante.

Mais dicas para hoje:

O Reino da Beleza, de Denys Arcand (Canadá). O diretor do corrosivo As Invasões Bárbaras, desta vez debruça-se sobre um drama amoroso. Arquiteto casado põe o casamento em crise quando conhece uma encantadora mulher quando vai participar de júri de um concurso em Toronto.

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 Sangue Azul, de Lírio Ferreira (Brasil). Filmado em Fernando de Noronha, põe em cena uma atração incestuosa em ambiente paradisíaco, filmada com a classe e a inventividade usuais no cineasta.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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