PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|Diário da Mostra 2011: Herzog e o mistério do abismo

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

 

É um engano básico considerar A Caverna dos Sonhos Esquecidos um mero documentário espeleológico. Mas, vamos por partes. E a primeira dessas partes consiste em localizar o filme de Werner Herzog como um documentário, sim, sobre uma caverna, como o próprio título diz.

PUBLICIDADE

Uma caverna muito especial, é verdade, chamada Chauvet, na França, na qual se encontraram estranhas - e notáveis - pinturas pré-históricas. A qualidade dessa, vamos chamá-la assim, arte rupestre é excepcional. Ela foi preservada, de acordo com cientistas, porque um terremoto vedou a entrada da gruta e a transformou numa espécie de cápsula do tempo.

Descoberta por acaso, em 1994, foi imediatamente fechada de novo para que seu conteúdo não se perdesse em contato com a atmosfera e hordas de turistas. Não será aberta jamais, a não ser para um seleto grupo de pesquisadores, que estuda as pinturas e suas implicações científicas.

A exceção foi aberta para o cineasta alemão Werner Herzog (de Aguirre, a Cólera dos Deuses e Fitzcarraldo), um conhecido aventureiro, alguém a quem agrada estudar o homem colocado em seu limite - seu filme mais recente, Into the Abyss, é um documentário sobre condenados no corredor da morte, nos Estados Unidos.

Herzog teve permissão de penetrar no santuário de Chauvet com uma pequena equipe e lá permanecer por tempo limitado. Para aproveitar melhor a oportunidade, teve a ideia de registrar a experiência em 3D. E, com a decisão, ganha o filme e ganha o público, pois, tantas vezes usado inutilmente, apenas para efeitos de marketing e preço de ingresso, desta vez o 3D justifica-se plenamente. É esse recurso que dá veracidade a uma experiência única, que de início parece um tanto claustrofóbica até se transformar em plena epifania.

Publicidade

As imagens causam a impressão de estarmos diante de uma maravilha. Algumas delas, como a sequência de cavalos superpostos, são de alta qualidade técnica. Diríamos desenhadas hoje, ou há pouco tempo, mas as datações de Carbono 14 afirmam que foram feitas 30 mil anos atrás. Há animais em profusão desenhados nas paredes da caverna, mamutes, bisões, leões, tigres. Alguns deles têm patas a mais. Por quê? Para simular movimento, conclui Herzog, o que transforma algumas paredes de Chauvet numa espécie de protocinema, na definição do diretor.

Estamos diante de uma maravilha, mas também de um mistério. Quem eram as pessoas que viviam naquela região e desenhavam com tanta desenvoltura? As obras eram coletivas ou fruto do esforço individual? Um dos cientistas faz uma análise de estilo de uma das obras e conclui que fora feita, do início ao fim, por um único indivíduo. Essas técnicas passavam de uma geração a outra? Não sabemos. E, dúvida mais aguda: com que propósito eram feitas as pinturas? Serviam a algum ritual? Não sabemos e só podemos especular.

O filme tem então essa dupla face: o sentido, digamos assim, estético, diante de algo muito belo; e a reflexão sobre o significado que desperta essa inesperada beleza. É tanto sensorial quanto intelectual. E nos leva a perguntas de ordem filosófica, que não nos fazemos no embrutecimento da vida cotidiana. Escondido no fundo de uma caverna está inscrito um mistério sobre nós mesmos tão grande e inspirador quanto aquele da imensidão do cosmos. Diante deles somos levados a perguntar sobre nossa história como espécie, a nossa posição na escala zoológica e no universo. Levam-nos a especulações vertiginosas. Portanto, fundamentais.

(Caderno 2)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.