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Cinema, cultura & afins

Opinião|Deves mudar de vida

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

 

Outro dia, vendo um filme sobre Lou Andreas-Salomé, ressurgiu para mim a figura de Rainer Maria Rilke.

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Rilke, sabemos todos, foi apaixonado por Lou e viveu com ela um amor para lá de tempestuoso. Bem, mas este é assunto do filme, que comento em breve por aqui.

Lembrei de Rilke, como dizia, por uma longínqua conversa com um amigo. Era quando se tinha tempo para falar longas horas sobre literatura, sem nenhum objetivo em mente que não fosse o próprio prazer da coisa em si.

Estávamos em Paris e ali tínhamos todo o tempo do mundo, mesmo. Sobretudo, tínhamos "a vida toda pela frente", como se costuma dizer aos jovens, que, não sei bem por quê, ficam irritados quando ouvem isso dos mais velhos.

Enfim, falávamos de Rilke, não sei por que motivo. E este amigo lembrou o poemaTorso Arcaico de Apolo, que termina com o verso: "Tens de mudar de vida". Ou "Deves mudar tua vida", segundo a tradução.

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Matutávamos sobre o poder da pedra antiga, a estátua incompleta, de convocar esse imperativo imposto de vez em quando a todos nós: mudar de vida. Começar de novo. Zerar. Passar a régua, como se diz. Apagar o que for possível e tomar novo caminho. Reinventar-se.

De vez em quando me vem a lembrança dessa conversa também antiga, ela própria. Vem como um banzo fora de época, e talvez também carente de sentido mais preciso. No frenesi do cotidiano, neste não-pensar compulsivo de que é feito nosso presente, volta o apelo longínquo do mármore evocado por Rilke: "Deves mudar tua vida". Como um chamado eterno, imóvel, vindo da antiguidade profunda.

A essa sensação indefinida de beleza e melancolia talvez chamemos poesia.

 

Abaixo, quatro traduções do poema e o o original, para quem curte o idioma alemão: Archaïscher Torso ApollosWir kannten nicht sein unerhörtes Haupt,darin die Augenäpfel reiften. Abersein Torso glüht noch wie ein Kandelaber,in dem sein Schauen, nur zurückgeschraubt,sich hilt and glänzt. Sonst könnte nicht der Bugder Brust dich blenden, and im leisen Drehender Lenden könnte nicht ein Lächeln gehenzu jener Mitte, die die Zeugung trug.Sonst stünde dieser Stein entstellt and kurzunter der Schultern durchsichtigem Sturzand flimmerte nicht so wie Raubtierfelle;und bräche nicht aus alien seinen Rändernaus wie ein Stern: denn da ist keine Stelle,die dich nicht sieht. Du musst dein Leben ändern.(Rainer Maria Rilke)Torso arcaico de ApoloNão sabemos como era a cabeça, que falta,De pupilas amadurecidas, porémO torso arde ainda como um candelabro e tem,Só que meio apagada, a luz do olhar, que saltaE brilha. Se não fosse assim, a curva raraDo peito não deslumbraria, nem acharCaminho poderia um sorriso e baixarDa anca suave ao centro onde o sexo se alteara.Não fosse assim, seria essa estátua uma meraPedra, um desfigurado mármore, e nem jáResplandecera mais como pele de fera.Seus limites não transporia desmedidaComo uma estrela; pois ali ponto não háQue não te mire. Força é mudares de vida.(Trad. Manuel Bandeira) Torso arcaico de ApoloNão conhecemos sua cabeça legendáriana qual as pupilas maturavam. Porémseu torso ainda arde como uma luminária,em que seu olhar, mais tênue, se detém,fica e brilha. Senão o leve reflexoda curva do seu peito não te cegaria,nem o sorrir, no giro dos quadris, iriacorrer para esse centro que portava o sexo.Seria apenas uma pedra deformadasob os ombros de diáfana derrocadae como pelos de fera não brilhariae nem teria toda sua forma rompidacomo uma estrela: lugar não haveriaque não te veja. Precisas mudar tua vida.(Trad. Karlos Rischbieter) Torso arcaico de ApoloNão sabemos como era a cabeça inaudita,onde as pupilas amadureciam. Glabrono entanto o torso aclara como um candelabro,onde apenas mais tênue, o seu olhar nos fitae brilha. Senão como poderia o plexodo peito assim cegar-te, e iria, no imprecisoarquear de parte da cintura, um leve risocorrer para esse centro, onde existia o sexo?Seria um simples bloco mutilado e faltoe de seus ombros nunca o translucente saltoreluziria assim como um lombo de feranem romperia as órbitas qual explodidaestrela: pois ali ponto nenhum se esperaque não te veja. Tens que mudar tua vida.(Trad. Ivo Barroso) Torso arcaico de ApoloNão conhecemos sua cabeça inauditaOnde as pupilas amadureciam. MasSeu torso brilha ainda como um candelabroNo qual o seu olhar, sobre si mesmo voltadoDetém-se e brilha. Do contrário não poderiaSeu mamilo cegar-te e nem à leve curvaDos rins poderia chegar um sorrisoAté aquele centro, donde o sexo pendia.De outro modo erguer-se-ia esta pedra breve e mutiladaSob a queda translúcida dos ombrosE não tremeria assim, como pele selvagem.E nem explodiria para além de todas as suas fronteirasTal como uma estrela. Pois nela não há lugarQue não te mire: Precisas mudar de vida.

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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