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Opinião|Democracia em Vertigem, a crônica de um país partido

Documentário de Petra Costa sobre o processo de erosão da democracia brasileira foi lançado pela Netflix e tem repercutido no País e pelo mundo. É, desde já, um dos principais filmes do ano

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
 Foto: Estadão

Lançado em escala global pela Netflix, o documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, tem colecionado elogios mundo afora. Ganhou resenhas favoráveis em publicações como The New York Times, The Guardian, El Pais e Variety. 

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No Brasil, em geral a recepção é boa, mas, claro, não unânime, e nem poderia ser. Ao trazer sua versão dos caminhos que levaram à atual distopia brasileira, tem agradado a parte do público que acredita termos vivido um golpe parlamentar-jurídico-midiático, que depôs uma presidente eleita, prendeu um ex-presidente favorito nas pesquisas eleitorais e, por fim, colocou no poder um capitão reformado que despreza a democracia, a corrói por dentro, homenageia torturadores, hostiliza mulheres, negros, LGBTs e indígenas. Não pode agradar a quem acredita, de maneira oportunista ou apenas ingênua, que tudo foi feito em nome da luta contra a corrupção. 

Narrado em primeira pessoa, Democracia em Vertigem traz as imagens da prisão de Lula em São Bernardo e, a partir delas, retraça um caminho cuja origem se situa nas manifestações de 2013, que começam como protestos contra o aumento de passagens, tomam de início um viés de esquerda para, logo em seguida, serem apropriadas pela direita. 

Não ficam de fora do documentário outras imagens que pontuam o percurso da nossa agonia - os passos que levaram ao impeachment como num jogo de cartas marcadas, o vazamento da conversa entre Lula e Dilma, o impedimento judicial para a posse de Lula como ministro da Casa Civil, a consumação do golpe e a posse de Temer. Depois Joesley, a agonia do governo de transição, e a entrega do poder a Bolsonaro, que deveria concluir essa etapa cirúrgica de exclusão da esquerda e fechar as feridas, mas, como se sabe, não chegou a pacificar e muito menos unir o país. Continuamos em plena efervescência e polarização. 

Não se chegou à paz em virtude da patologia do processo. Ao repisar em fatos conhecidos de todos os que viveram o processo, Democracia em Vertigem tem o mérito de nos guiar pelo interior de uma obra de Kafka (não de Cafta, como quer o ministro da Educação), em que culpas já se estabelecem de saída e tudo o mais não passa de encenação. O Brasil passa a ser um imenso teatro, palco de um script já definido, que nos faz lembrar do conto Tema do Traidor de do Herói, de Jorge Luis Borges, levado por Bernardo Bertolucci para a tela no contexto do fascismo em A Estratégia da Aranha.

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 Com seu fluir tranquilo, narrado por uma voz que nada tem de assertiva ou panfletária, o filme nos passa a sensação da inevitabilidade, de um monstro movido por inércia, que nada nem ninguém poderia deter ou tirar do seu rumo. 

Às imagens já conhecidas, Petra soma outras, inéditas, que conferem peso à narrativa. Vemos a tranquilidade aparente de Dilma, mesmo quando emparedada pela máquina montada para derrubá-la. Mas vemos também seu rosto devastado pelo cansaço e pela luta, que sabe vã. Vemos Lula no interior do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, preparando a mala que levaria para sua prisão em Curitiba. As sequências tomadas do interior do Palácio do Planalto produzem uma sensação de mal-estar, com suas salas imensas e vazias, como preparadas para acontecimentos terríveis. Parece, às vezes, o clima de O Iluminado, de Stanley Kubrick, com seu Hotel Overlook povoado de fantasmas. 

Esses fantasmas do poder, Petra os enuncia de tempos em tempos. São as famílias que mandam no país. Na indústria, no agronegócio, nas construtoras, no capital financeiro. Os donos do Brasil, cujas fortunas passam de pai para filho, geração após geração. 

Ela mesma pertence a uma dessas famílias. Seus avós fundaram a Andrade Gutiérrez, uma das grandes construtoras. No entanto, seus pais foram militantes políticos e perseguidos durante a ditadura. Sua mãe chegou a ficar presa na mesma cadeia em que esteve Dilma durante a ditadura. A certa altura, a diretora diz que boa parte da sua família votou em Bolsonaro. Sua opção foi pelo outro lado. Ela não esconde a escolha e nem se ufana. Simplesmente registra. O documentário tem um lado. O dela, o de boa parte da opinião pública brasileira. A outra parte vai detestar, sem mesmo ver o filme. Estamos nesses termos.

 

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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