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Cinema, cultura & afins

Opinião|Coppola reinventa-se em 'Virgínia'

Em entrevista a uma revista francesa (Les Inrocks), Coppola disse que era inútil tentar a volta ao seu patamar dos anos 1970. Era melhor se reinventar. Sim, o todo poderoso diretor da série dos Chefões e de Apocalipse Now, reconvertido em vinhateiro, aposentado e pai de cineasta cult, Sofia, volta ao cinema com filmes de pequeno orçamento, como Tetro e este Virgínia, Twixt em inglês.

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

É mesmo reinvenção desse veterano que filma como jovem e resolve se expressar nos termos do cinema de gênero, ele que fizera um Drácula de antologia. Aqui, temos uma trama de mistério e horror gótico, temperada com boas doses de humor e senso de absurdo. O personagem principal é um escritor decadente, Hall Baltimore (Val Kilmer), que vai lançar seu romance mais recente numa cidadezinha do Meio Oeste.

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Hall Baltimore é uma encrenca só. Alcoólatra, seus livros não vendem, não consegue inspiração para escrever uma obra que interesse ao público e vê-se pressionado para pagar a pensão de sua ex. Pesa sobre ele a culpa por um acidente fatal com uma criança. De certa forma, é uma sorte ter chegado a uma cidade tão mal assombrada que seu relógio oficial, plantado sobre um soturno campanário, mostra várias horas divergentes ao longo do dia. Além disso, há um crime não resolvido na cidade e vários lugares tenebrosos, como uma velha mansão onde teriam ocorrido outros assassinatos. Quando nada, a visita pode servir como inspiração para um livro melhor.

O filme tem, assim, esse outro desdobramento, que é o da construção da obra. Como transformar fobias e mesmo o pânico em arte através da literatura (ou do cinema)? É uma questão que persegue Coppola e, para isso, ele traz à cena ninguém menos que o fantasma de Edgard Allan Poe, que vem dialogar e serve de mentor ao pouco prolífico Baltimore. Poe (Ben Chaplin) explica ao escritor não apenas alguns fatos que ocorreram na cidade, mas lhe dá uma verdadeira aula de estética. Na verdade, as falas são citações quase literais de um dos textos críticos mais famosos de Poe, Philosophy of Composition, no qual descreve seu processo de criação de O Corvo, uma de suas poesias mais conhecidas.

O texto é curioso, porque nele esse autor de gênio, atormentado e também alcoólatra, sustenta que a construção de uma obra de arte, no caso um poema, é procedimento perfeitamente racional, em que nada se deixa ao acaso, ou à intuição, ou, menos ainda, a uma vaga inspiração. Escrever um poema seria proceder pela mesma lógica que resolve um problema matemático.

O que se sabe, todavia, é que Poe, como quase todo grande artista, procurava exorcizar fantasmas (literalmente) através da arte. Escrevendo, explorando fobias, dores e obsessões até o limite, esperava livrar-se delas. Ou, pelo menos, aliviá-las. É o mesmo desafio colocado à figura ficcional de Baltimore, ele próprio atormentado por problemas diversos, mas cujo tópico central seria o acidente com uma criança. Como, aliás, é o próprio caso real de Coppola que, também ele, projeta em Baltimore essa figura da culpa causada pela morte de um filho.

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O notável é que Coppola desdobre a tentativa de dominar a dor sob a forma heterodoxa de uma mistura de gêneros. Sem medo de experimentar, vai do drama à comédia quase sem transição. Coloca o tom gótico como cor dominante e o faz dialogar com uma profusão de registros, do operístico ao prosaico filme de fantasmas e de vampiros. Assim, Baltimore, em suas andanças pela cidade, conhece uma sedutora jovenzinha, Virginia, que o acompanha. Mas essas andanças são da ordem da realidade ou do sonho? E quem sabe o limite entre uma e outro?

De qualquer forma, Virgínia não é um filme perfeito (mas qual o é?). Certas passagens podem parecer artificiais ou atribuladas. A música talvez seja onipresente e outros "defeitos" podem ser contabilizados, meio que à escolha do freguês. O que não se pode negar é a liberdade com que Coppola trabalha e a maneira improvisada, quase jazzística, de tratar de problemas vitais em uma obra às vezes parecida ao divertissement de um grande mestre flexionando seus músculos. Seja como for, com seus problemas e tudo,Virginia é um filme de personalidade.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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