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Opinião|Com brasileiro não há quem possa....

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

1958 foi um ano muito especial. Tudo parecia acontecer ao mesmo tempo - bossa nova, Éder Jofre, Maria Ester Bueno. Um presidente, também 'bossa nova', Juscelino Kubitschek, mais conhecido pela sigla JK, que prometia 50 anos de progresso em cinco de mandato. Havia Brasília, a 'novacap', em construção. E, no meio do ano, chegou o grande presente para o País - a primeira vitória numa Copa do Mundo, essa cobiçada conquista simbólica na qual o Brasil havia falhado em várias ocasiões: em 1938 quando, com Leônidas, formou sua primeira seleção competitiva. Em 1950, quando perdeu a decisão, no palco de um Maracanã lotado com 200 mil torcedores, para o raçudo Uruguai. Em 1954, quando caiu diante do incrível time húngaro.

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Essas derrotas, em especial a de 1950, teriam inoculado no povo brasileiro o vírus daquilo que Nelson Rodrigues, genialmente, chamava de 'complexo de vira-latas', um proverbial e incurável complexo de inferioridade, uma paralisia aguda diante de desafios, que se expressava diretamente no futebol. Pois bem, a seleção, que mais uma vez saiu desacreditada do Brasil, deu a volta por cima e encantou o mundo na Suécia. Venceu com um futebol de sonho, alegre, belo e eficaz, que fluía dos pés de Didi, Pelé, Garrincha & cia. A conquista da Taça Jules Rimet em Estocolmo representou, segundo o mesmo Nelson Rodrigues, a redenção de todo um povo. Mais prosaicamente, funcionou como cartão de visita da nação brasileira diante da comunidade internacional. Essa é a saga apresentada no documentário 1958 - O Ano Em Que o Mundo Descobriu o Brasil, de José Carlos Asbeg. O filme chega exatamente 50 anos após essa conquista histórica - o primeiro dos cinco títulos mundiais brasileiros.

Em conversa com o Estado, Asbeg disse que gosta muito de futebol e que, como todo brasileiro de sua geração (nasceu em 1950), tem aqueles jogadores na conta de heróis, de ídolos de pés sólidos. 'Confesso que me aproximava deles com a emoção de uma criança, e que ia esticando as entrevistas pelo puro prazer de conviver com meus ídolos de infância', diz. Daquele grupo, muitos já se foram - Mauro, Vavá, Joel, Dida, Garrincha, Didi, entre eles. Mas, felizmente, muitos continuam vivos e foram entrevistados pelo diretor: Djalma Santos, Nilton Santos, Dino Sani, Zito, Moacir, Mazzola, Zagallo. Um deles, no entanto, chama a atenção pela ausência. Justamente ele, o Rei, não dá seu depoimento no documentário. 'Não consegui uma brecha na agenda de Pelé', diz o diretor. 'Mas espero ter dado a ele o lugar que merece no filme', acrescenta.

De fato: Pelé tem amplo destaque no documentário. E nem poderia ser de outra forma. Afinal, aquele garoto de 17 anos se tornou um dos protagonistas daquela Copa depois de entrar no time na terceira partida, contra a União Soviética, e começar a encantar o mundo, juntamente com Garrincha. Pelé havia viajado contundido e não fora escalado nos dois primeiros jogos. Nem Garrincha. Mas o empate diante da Inglaterra por 0 a 0 convenceu a Comissão Técnica de que era melhor reforçar o ataque. E os dois entraram no time, para não mais sair. Juntos, incendiaram a seleção - e iluminaram a copa sueca. Os três primeiros minutos iniciais contra a União Soviética foram definidos por um jornalista como 'os mais eletrizantes da história do futebol'.

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Outra figura valorizadíssima é Didi, o grande meia, o cérebro do time, considerado o melhor jogador da Copa de 1958. Didi, que morreu em 2001, é lembrado como o inventor da 'folha seca', tipo de chute no qual a bola ganha altura e cai de repente, enganando o goleiro. Quem inventou o nome para a jogada foi o jornalista Luiz Mendes, que conta a história no filme. Didi é visto também naquela que talvez seja a seqüência mais famosa de sua vida. Na final contra a Suécia, o Brasil toma o primeiro gol. Os jogadores, apavorados, querem reiniciar logo a partida. Mas Didi retém a bola e caminha com ela lentamente até o meio de campo. Sereno como o 'príncipe etíope' que ele era, na definição de Nelson Rodrigues.

Vários jogadores testemunham que essa calma, infundida no time por Didi, foi fundamental para que o Brasil virasse o jogo e goleasse o time da casa por 5 a 2, conquistando a Copa. Aliás, tudo o que de mais importante se diz no filme vem pela boca dos boleiros. Não existe uma narração em off, onisciente, que diria a 'verdade' sobre os fatos. Interessa a versão de quem os viveu. 'Esse filme é uma homenagem aos nossos heróis; queria que fossem eles a contar a história', diz Asbeg.

Esse caráter testemunhal se estende àquele que talvez seja o aspecto mais instigante do filme - os depoimentos dos jogadores de todos os países que enfrentaram o Brasil durante a campanha de 1958. Como foi jogar contra aquela seleção? Austríacos, ingleses, soviéticos, franceses, galeses e suecos contam suas experiências. Talvez o relato mais divertido seja o de um soviético contando que, depois do jogo, atirou a chuteira contra a parede do vestiário e gritou: 'Não jogo mais; isso que nós jogamos não é futebol. Futebol é o que eles jogam!' Naquele ano, o Brasil se apresentava ao mundo. Nada melhor do que saber a opinião daqueles que receberam esse primeiro cartão de visitas.

Dois Campeões Do Mundo

DINO SANI - 'O jogo mais difícil foi contra o País de Gales, que ganhamos por 1 a 0. Gol de Pelé. Naquele tempo a gente não conhecia os jogadores como hoje. Ninguém sabia direito quem era esse Pelé. Quer dizer, se ele estava lá, é que era bom. Mas só quando começou a jogar é que vimos que iria longe. Mas ninguém imaginava que iria tão longe assim. Foi o maior de todos. Naquele tempo o futebol era diferente. É difícil comparar duas épocas, mas hoje o futebol é mais velocidade, força, pouca inteligência, pouca habilidade. Um ou outro jogador que sobressai, mas é mais empurrão, cotovelada...É uma guerra. Está virando um esporte violento.'

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Crítica do filme:

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Como em geral acontece com os filmes de futebol, também 1958: O Ano Em Que o Mundo Conheceu o Brasil aposta muito na emoção. Poderia ser diferente? Quem sabe. Mas a importância simbólica de uma grande conquista talvez tenha repercussões pouco captáveis pelo puro intelecto, ou pelo distanciamento mais ortodoxo.

Em especial se o assunto é futebol e se o país é o Brasil, onde esse esporte é praticado com paixão e seguido como uma seita. O culto cerimonial à seleção brasileira talvez hoje tenha esfriado um bocado, por uma série de razões que não cabe aqui discutir. Mas, até pelo menos os anos 1970, 1980, a seleção era uma febre, um fanatismo popular, uma religião laica à qual a nação toda se entregava.

Esse clima é evocado no filme. A contextualização é leve, como o próprio diretor diz ter desejado. Mas, delicada que seja, deixa entrever o país que o Brasil era naquele final de década. Um país jovem, cheio de promessas e aspirações, tão inspirado quanto inseguro de suas forças. Não à toa, Asbeg invoca a figura de Nelson Rodrigues, esse oráculo das colunas esportivas que tentava arrancar, pela via do futebol, um país inteiro da sua sina de vira-latas. Nelson, citado através de seus textos prodigiosos, e encenado por um ator enquanto batia suas laudas à máquina, funciona às vezes como um doce corifeu, enunciando os perigos e as esperanças que rondavam os protagonistas da façanha histórica.

Há um centro duro no filme, uma linha que serve de eixo e direção - os lances e gols da partida final, os 5 a 2 na Suécia. E, entre todos os lances, um, que se repete diversas vezes, porque é como a chave de ouro do soneto, o desfecho perfeito do drama. A bola é alçada para dentro da área sueca. Vemos quando ela parte do lado esquerdo. Acompanhamos a bola subindo e descendo de outro ângulo. Dois jogadores sobem para disputá-la e um terceiro - o goleiro sueco, Svensson - se adianta para interceptá-la . O jogador negro sobe mais alto e cabeceia para cima, encobrindo o goleiro. A bola entra mansamente no canto e o garoto de 17 anos, Pelé, cai desmaiado em campo. Fim do ato.

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Todos os acontecimentos anteriores, da preparação aos jogos, confluem para essa mágica partida final, o cair do pano da Copa de 1958. Mas é claro que a grande sacada, o diferencial, são os depoimentos dos oponentes do Brasil. Esse país que até hoje tanto necessita da aprovação externa, olha-se através dos olhos dos outros. E esse olhar não é sempre de aprovação. Não falta a dissonância, com os franceses acusando Vavá de ter provocado uma fratura no zagueiro Jonquet, obrigando-os a jogar com dez pelo resto da partida.

Se procurarmos problemas no filme, os encontraremos sem dificuldade. Mas seria pura mesquinharia, diante de tantas coisas boas que ele evoca. Seria como mergulhar na piscina sem ver o azul da água, como disse o tão citado Nelson Rodrigues a um crítico que só se sentia feliz ao ver defeito em tudo.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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