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Opinião|Cine OP. Eduardo Coutinho, a TV e o povo

OURO PRETO - O outro seminário a que me referi no post anterior foi Fragmentos da Vida: sobre Um Dia na Vida, de Eduardo Coutinho. Com Cezar Migliorin, Consuelo Lins e João Moreira Salles. Mediação de Francis Vogner dos Reis.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Bem, como alguns sabem, Coutinho, em outubro de 2009, gravou um dia inteiro de programação da TV aberta, em vários canais, e depois montou essas imagens num longa que só pode ser exibido em sessões especiais por causa de problemas com direitos autorais. Um longa destinado à clandestinidade. Eu o vi numa sessão da Mostra de Cinema em São Paulo, com presença do próprio Coutinho, Jorge Furtado e Eduardo Escorel. Espero que a Mostra tenha gravado esse debate, pois foi histórico.

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Enfim, trata-se de um filme espantoso. A variada barbárie da TV brasileira floresce e nos é atirada na cara, provocando constrangimento, talvez um tanto de náusea, e risos, às vezes desmotivados.

Não que alguém ignore o horror que é a TV brasileira. Apenas, nós, os bem pensantes, fingimos que a ignoramos. Vivemos em nosso mundo de livros, música, cinema de qualidade e em nossos canais preferidos da TV por assinatura. Não que sejam tão melhores assim, mas pretendemos habitar um mundo dourado, superior, que nada tem a ver com aquele outro,o mundo cão, destinado a outras classes sociais e gente sem instrução. Mundo dos programas popularescos, de brigas de casais em público, dos pastores evangélicos e exorcismos, da comicidade pesada e preconceituosa. Dos programas de auditório, mas também dos telejornais, da publicidade destinada ao consumo infantil e etc.

Pois bem, de maneira maquiavélica, Coutinho organiza esses restos, destinados à lata do lixo das emissoras, e dá-lhes a forma de um longa-metragem para ser exibido em tela grande e debatido por gente de alto gabarito intelectual.

Se existe algum procedimento subversivo é este. Por isso, alguém, no debate, Consuelo Lins, se não me engano, que trabalhou muito com Coutinho, descreveu sua sensação de ver o longa como semelhante à de assistir àfamosa votação na Câmara, presidida por Eduardo Cunha, que abriu o processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff. Todo mundo sabia o que eram os politicos. Mas é como se não soubéssemos e nos recusássemos a ver. Foi preciso aquela longa, minuciosa, sádica cerimônia, transmitida em direto, para que as entranhas do país nos fossem reveladas, quisemos vê-las ou não.

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No entanto, como lembrou João Moreira Salles, Coutinho tinha uma característica: jamais se sentia superior àquele material gravado. Aquilo tudo faz parte do Brasil, é preciso entendê-lo sem preconceitos, de mente aberta. Daí o serviço que o longa nos presta. Podemos ter repugnância ou desprezo por aquele conteúdo, mas não pelas pessoas que o consomem. Nada se entende a partir do preconceito ou do nariz empinado.

Essa cisão entre a esquerda bem pensante e o povo tem provocado uma curiosa alienação intelectual no Brasil. Imagina-se um país e um povo idealizados, que, porém, não correspondem à realidade. Depois, quando as rupturas acontecem, somos tomados de surpresa. Quando o governo Goulart foi derrubado, em 1964, as esquerdas se surpreenderam com a falta de reação. Algo semelhante, com todas as diferenças de praxe, aconteceu agora, com o golpe parlamentar de 2016 que, no entanto, começou a ser armado assim que as urnas de 2014 foram abertas, e talvez ainda antes. Foi-se levando e tocando o barco como se, no final, os beneficiados pelos governos do PT fossem sair às ruas para defendê-los. E a esquerda ficou surpresa mais uma vez. Por pura ignorância. Douta ignorância, pôde-se dizer.

Meu interesse não é resumir esse debate, cuja riqueza extrapola as dimensões de um texto ou mesmo de um artigo. Apenas limito-me a indicar isso: Um Dia na Vida, de Eduardo Coutinho, é um raro esforço para entender a mentalidade popular brasileira, sem sentido de superioridade, sem simplificações sociológicas ou esnobismos. Enquanto não mergulharmos nessa tarefa de compreensão estaremos fadados a ser apanhados de calças curtas de vez em quando.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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