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Opinião|Cine Ceará 2015. Flores e desertos

A ótima surpresa do Cine Ceará 2015, até agora, foi o filme basco Loreak (Flores), de Jon Garaño e José Mari Goenaga. Deve ser uma das primeiras vezes, senão a primeira, que uma película em língua basca (euskara) chega ao Brasil. Uma nota sobre isso - o mais conhecido cineasta basco, Julio Medem, faz seus filmes em castelhano. Desse modo, a estranheza de Loreak fica por conta de um idioma, dos mais antigos do mundo, a cujas sonoridades nossos ouvidos não estão habituados. Já a história é sensível e poderia ocorrer em qualquer lugar do mundo. Toda ela, como indica o título, é estruturada por flores. Uma mulher em crise de casamento, recebe um buquê toda semana. Quando um homem se acidenta e morre, a viúva fica intrigada quando, no local do desastre de automóvel, toda semana um ramo de flores é depositado por alguém que não se identifica. O mesmo enigma toca a mãe do homem morto, que deseja saber quem ainda se lembra de seu filho, a ponto de levar flores semanalmente ao local onde ele perdeu a vida.

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Quem está em Fortaleza representando o filme é a atriz Itziar Iurño. Seu personagem é Lourdes, a viúva do acidentado. Alegremente, ela não se importa que todo o pessoal do festival a chame de Lourdes, nome da personagem, muito mais fácil de lembrar e pronunciar que seu nome basco verdadeiro. Tem sido uma presença luminosa no Cine Ceará.

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Quanto ao filme, em si, é sempre muito agradável ver que o cinema, em época de tal brutalidade como a nossa, ainda se mostra capaz de dizer sentimentos com todas as sutilezas que eles merecem. Apesar de dirigido por dois homens, Loreak revela-se uma obra de alma feminina. "Durante a filmagem, brincávamos com os diretores - 'como vocês sabem que é desse jeito que nós mulheres sentimos as coisas'? ", diz Lourdes. Aliás, Itiziar.

Jauja, o outro concorrente, já havia passado por outros festivais e tinha seu selo de qualidade assegurado. Seu principal intérprete é Viggo Mortensen, no papel de um capitão dinamarquês servindo nos confins da Patagônia. Às tantas, sua filha desaparece com um jovem soldado e o capitão vai atrás do casal. Muita gente se lembrou de Rastros de Ódio (The Searchers), o clássico de John Ford, como uma das matrizes possíveis dessa busca pela mulher branca em território indígena. Alonso jura nunca ter visto o filme de Ford.

No entanto, diferentemente do tom realista mantido por Ford ao longo de toda a trama, na de Lisandro Alonso há uma súbita mudança de registro. A partir do momento em que o protagonista encontra uma velha senhora habitante de uma caverna, tudo muda, de maneira misteriosa. Entramos, então, no território do fantástico, onde as relações lógicas habituais são abolidas e os tempos se misturam. Há como uma busca mística, metafísica mais provavelmente, e que joga o espectador num mundo inusual.

Não estou comparando obras, mas trata-se de um salto narrativo de mesma ordem do de 2001 - uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, em sua parte final. Ou, em termos literários, o desfecho de Relato de Arthur Gordon Pym, de Edgard Allan Poe, em que a narrativa trágica de um naufrágio dá lugar, nas páginas finais, a algo sobrenatural, deixando o leitor em estado de completa surpresa. E deleite estético, evidentemente.

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Jauja ainda impressiona pelo registro pictórico e pelo formato de exibição quadrado, pouco usual. Esses expedientes jogam sobre o relato um manto de irrealidade, mesmo em seus momentos mais convencionais. Tudo somado, Jauja parece uma obra das mais impactantes e destinada abrir múltiplas interpretações sobre seu significado. Mas não espere, para isso, auxílio do diretor. Alonso, com ar permanentemente blasé, diz que ele mesmo não sabe o que significam certas coisas de seus filmes. E que é melhor vê-lo do que procurar entendê-lo. No fundo, segue à risca o conselho de Umberto Eco, que recomendava aos autores o silêncio, uma espécie de morte simbólica depois de concluída a obra. Aos outros, a tarefa de interpretá-las.

Isso, sobre os longas, que vem se destacando numa seleção variada e de bom nível, como já se previa. Já os curtas têm decepcionado. Nenhum deles, até agora, chamou a atenção e parecem oriundos de uma mesma vertente do cinema, sem variações. Vamos ver se o melhor está reservado para a segunda parte do festival. Não custa ter esperança.

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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