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Opinião|Chris Marker, o cineasta ensaísta

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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"Esta é a história de um homem marcado por uma imagem de infância." Desse modo começa a narração de La Jetée ( 1962), o filme mais famoso do diretor francês Chirs Marker, que dia 30 de julho, aos 91 anos.

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A importância de La Jetée torna-se mais notável quando lembramos que é um curta-metragem, com 28 minutos de duração. Aliás, é o único título em curta-metragem a figurar na lista dos 50 filmes mais importantes de todos os tempos do British Film Institute, segundo pesquisa que acaba de ser realizada com críticos de todo o mundo. La Jetée inspirou um longa-metragem, a distopia de Terry Gilliam, 12 Macacos e tornou o nome de Marker conhecido fora do âmbito mais experimental.

La Jetée é, talvez, uma das mais influentes obras da ficção científica no cinema, gênero que renovou. É apresentado como "un photo roman de Chris Marker". Tem mesmo algo das antigas fotonovelas, mas de conteúdo futurista. Apresentando a sua história através de fotos fixas e uma narrativa em off contínua, fala de um mundo destruído pela guerra, da população vivendo em subterrâneos, pois a superfície da Terra foi contaminada pela radiação. Fala na remota possibilidade de salvação através de uma viagem no tempo e na imagem marcante que ficou na memória desse sobrevivente - um rosto de mulher. O "passaporte" para a viagem no tempo seria essa imagem querida, o que dá ao filme outra tonalidade, poética desta vez. E, como se trata de uma reflexão política e histórica, nos coloca nessa outra dimensão do cinema de Marker, a do filme-ensaio, que ele tornará mais explícita em outras obras.

Como qualquer obra-prima, La Jetée é muitos filmes em um. Se precisássemos resumi-lo em apenas uma frase, diríamos que é um filme sobre o tempo. E, com isso, entramos no cerne da visão de mundo deste autor que começa a trabalhar com seu amigo e contemporâneo Alain Resnais, em Les Statues Meurent Aussi(As Estátuas Também Morrem, 1952). Lembremosque Resnais é autor de O Ano Passado em Marienbad e Hiroshima, Meu Amor para se aquilatar a proximidade de interesses e visões de mundo dos dois cineastas.

Essa preocupação com o tempo, em seu sentido abstrato, não ofusca o interesse de Marker pelo nosso tempo concreto, o tempo da História e de suas circunstâncias. Como cineasta engajado, e à esquerda, sua obra se empenha em testemunhar, refletir e posicionar-se diante dos grandes acontecimentos da época. Foi esse tipo de motivação que o levou a construir a trilogia famosa - Dimanche à Pekin  (1955), Lettre de Sibérie (1958) e Cuba Si (1961). No quadro da Guerra Fria, volta seu interesse para o enigma da China, para a União Soviética e para então nascente a revolução cubana.

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Esse empenho de Marker em grandes balanços históricos redunda no gigantesco painel Le Fond de l'Air est Rouge (1977). É, possivelmente, a mais compacta e paradoxal meditação sobre a situação da esquerda naquele momento histórico. Em 240 minutos, abrange da luta do Vietnã à morte de Che Guevara (em 1967) e o Maio de 68 francês - tudo isso numa primeira parte intitulada Les Mains Fragiles (As Mãos Frágeis). Na segunda, Les Mains Coupées (As Mãos Cortadas), fala de duas tentativas utópicas  da esquerda e seus desfechos trágicos: a Primavera de Praga e a eleição democrática de Salvador Allende, no Chile.

Em uma das poucas vezes que se dignou a explicar seus filmes, Marker falou sobre os movimentos revolucionários, conforme os retratou nesse longo filme: "Fracassaram em tudo o que tentaram. Entretanto, foi sua existência mesma o que transformou mais profundamente a política do nosso tempo". Essa dialética - o fracasso que, no entanto, transforma - está inscrita na linguagem mesma dessa obra pouco linear e nada afirmativa, todo o contrário de um panfleto ou de uma confissão de impotência.

Outro notável exemplo de filme-ensaio-poético é Sans Soleil (1982), imersão no mistério do mundo a partir de paisagens pouco  usuais  - Tóquio e a África, com Guiné Bissau e Cabo Verde. O fio que une as ideias fílmicas é a leitura de cartas que uma mulher desconhecida recebe de um amigo, cineasta. Ele viaja pelo mundo e relata suas experiências e a maneira como as processa. O fluxo de imagens é vertiginoso; o das palavras também. O espectador sente-se fascinado e imerso nessa voragem como em um sonho (ou seria um pesadelo?), que é o do século 20 se encaminhando para seus anos finais.

Mais uma vez, Marker se pergunta sobre a natureza do tempo, como pensá-lo, como dominá-lo? E, no meio do percurso, se indaga como faziam os homens para reter o tempo quando ainda não existiam os meios de gravação mecânica de imagens, como a fotografia e o cinema. De maneira borgiana, imagina uma ficção inversa: lutamos contra o esquecimento, mas o que seria de um homem que nada pode esquecer? Como poderia pensar? Remete, para quem conhece, ao conto Funes, o Memorioso, de Jorge Luis Borges, sobre o personagem condenado à memória absoluta. Para este homem, o esquecimento seria uma conquista.

Sans Soleil(Sem Sol) é, entre outras coisas, essa reflexão sobre a memória e o esquecimento e de como nós, homens históricos, os usamos para sobreviver e superar nossos traumas. O filme começa e termina com uma imagem linda e idílica de  crianças brincando numa paisagem paradisíaca na Islândia. Mas, na segunda vez que essa imagem volta, ficamos sabendo que um vulcão voltou à atividade e destruiu toda aquele belo cartão postal. O tempo implacável, do qual não se escapa, e com o qual não se negocia, como está em La Jetée.

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A obra de Chris Marker é vasta e ainda pouco acessível no Brasil. Não há lugar para ela em um circuito formatado para abrigar batmans e homens aranha. Em 2009, o Centro Cultural Banco do Brasil realizou uma ampla retrospectiva da obra multimídia de Chris Marker. Foi um acontecimento notável.  Alguma coisa está disponível em DVD. A Aurora lançou La Jetée e Sans Soleil; há também Gatos Empoleirados e O Túmulo de Alexandre (ambos pela Videofilmes). Muito ainda há a se fazer por aqui para divulgar essa radical meditação sobre o tempo e a História.

(Caderno 2/Domingo)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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