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Opinião|Brasília 2019: Noite de máfia e vaias

 

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
 Foto: Estadão

BRASÍLIA - Foi bem tumultuada a noite de abertura do Festival de Brasília. O secretário de Cultura e Economia Criativa do DF, Adão Cândido, fez seu discurso debaixo de vaia cerrada por parte da plateia. Decidiu-se a levar sua fala até o fim, mas, enervado com a parte (grande) da plateia que o apupava, bradou que eles estavam prestando um "desserviço ao cinema nacional e sabotando o principal evento cultural do DF". Há uma clara insatisfação na cidade com os rumos que vêm sendo tomados pelo novo governo eleito em 2018. Em especial o cancelamento do FAT (Fundo de Apoio à Cultura), no valor de R$ 25 milhões. 

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Após o episódio das vaias, o ator Marcelo Pelucio subiu ao palco para ler um manifesto do Movimento Cultural do DF. Como àquela altura do campeonato a tolerância estava próxima do zero, um segurança parrudo entrou em cena para convencer o manifestante a abortar a leitura do texto. Alguém de bom senso dissuadiu o segurança, que, no entanto, permaneceu num canto do palco enquanto a platéia se manifestava com gritos de "censura, censura!". Então alguém teve a "boa ideia" de cortar o som do microfone do manifestante, o que só fez aumentar a gritaria. 

Em meio ao caos, a apresentadora Maria Paula tentava convencer o público que tudo estava lindo, divino e maravilhoso. Em vão. 

Em meio a tanta polêmica, os melhores momentos da abertura do festival foram a premiação de Fernando Adolfo, antigo diretor do evento, com a medalha Paulo Emílio Sales Gomes e a entrega da estatueta do festival (o candango) ao homenageado do ano, o ator Stepan Nercessian. E também a apresentação do lado brasileiro de O Traidor, de Marco Bellocchio, filme escolhido para abrir o festival. Subiram ao palco a atriz Maria Fernanda Cândido, que interpreta Cristina, mulher brasileira do mafioso Tommaso Buscetta, os produtores Caio e Fabiano Gullane, o produtor delegado André Ristum e o autor da trilha complementar do filme, Patrick Jong. A trilha principal é assinada pelo mestre Nicola Piovani. 

Bem, depois de tanta confusão, o público foi recompensado com a exibição de um filmaço, mostrando Bellocchio em grande forma aos 80 anos. O Traidor é um relato impressionante das relações de Buscetta (Pierfrancesco Favino) com a Cosa Nostra. É um painel também dos conturbados vínculos políticos da máfia, com personagens como o várias vezes premiêr Giulio Andreotti e o juiz Giovanni Falcone, assassinado em 1992, ídolo da operação Mani Pulite (Mãos Limpas), que tentou erradicar a corrupção da península. 

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Buscetta morou no Brasil, casou-se com uma socialite e sofreu torturas nas mãos da polícia brasileira. Na versão do filme, os policiais ameaçaram jogar a esposa do mafioso de um helicóptero ao mar caso ele não abrisse o bico e denunciasse ex-companheiros da máfia. 

Enfim, Buscetta é visto em vários momentos de sua vida, da infância aos tempos de glória na organização, a fuga para o Brasil e para os Estados Unidos. A narrativa trabalha com tempos alternados, sem ordenação cronológica. Pinta um personagem que não é herói e nem vilão. Buscetta é visto com um ser humano limitado, um criminoso, mas que não aceita mudanças comportamentais da Cosa Nostra, em particular as que surgem depois que a organização entra no tráfico de drogas e o jogo se torna cada vez mais pesado. Passam a matar até mulheres e crianças o que, segundo Buscetta, não ocorria antes e vai contra o código de ética da organização. Ao mesmo tempo, Bellocchio não cai na armadilha de uma máfia romântica e idealizada que teria existido em tempos passados. De qualquer modo, a opção do diretor é sempre tratar temas complexos com complexidade. Nuances de comportamento de mafiosos existem, e nem por isso eles deixam de ser criminosos. 

A direção do filme é impecável. E intensa. Há cenas de antologia, como a da alfaiataria, em que Buscetta escolhe um terno e topa com outro freguês ilustre da casa - ninguém menos que o onorevole Giulio Andreotti. E há cenas brutais, como os de assassinatos em série, e uma, em especial, a do atentado fatal contra o juiz Falcone, explodido em seu carro numa estrada. A cena provoca um baque na plateia. 

Inesquecíveis, também, as cenas do julgamento dos mafiosos, em Palermo, com a corte transformada em circo e caos. Entre a hilaridade e o pastelão, os réus zombam dos juízes, dando tom farsesco ao ritual. Isso não impediu que pegassem penas pesadas, alguns com sentenças de prisão perpétua. 

O mundo da máfia é o dos códigos de honra, o principal deles sendo o silêncio - a omertà. Buscetta o infringe, tornando-se delator. Mas, ao mesmo tempo, honra o compromisso com o juiz Falcone, a quem respeitava e admirava. São muitas as ambiguidades nesse retrato feroz da política italiana, em seus bastidores e porões mais profundos. Alternando o realismo do cinema verdade a um tom fabular (que inclui até sonhos do protagonista), a ironia e mesmo a ópera bufa, Bellocchio faz um filme brilhante. Como de hábito. 

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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