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Opinião|Brasília 2017. 'Arábia' e o mundo precário de nosso tempo

Arábia, dos mineiros Affonso Uchôa e João Dumans, soma os encantos de um filme de estrada à reflexão sobre a precarização do mundo do trabalho.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
 Foto: Estadão

BRASÍLIA - Com Arábia, belo filme sobre o mundo do trabalho brasileiro, encerrou-se ontem a mostra competitiva da edição de 2017 do Festival de Brasília. A ele, somou-se o sensível curta A Passagem do Cometa, de Juliana Rojas.

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Digo que o longa mineiro de Affonso Uchôa e João Dumans é sobre o mundo do trabalho e já fico com medo de que o leitor pense se tratar de um sisudo documentário sobre as más condições laborais, etc. Não é nada disso. Trata-se de uma ficção, escrita em tons baixos da sutileza, apenas que tem por protagonista Cristiano (Aristides de Souza), um trabalhador típico do Brasil.

A história começa em Ouro Preto (MG), onde um rapaz encontra um caderno na casa de um dos operários da metalúrgica local e nele descobre um diário de vida. Era no caderno espiral que Cristiano esboçava e tentava dar sentido a uma vida errante, feita de muita necessidade, de alegrias e de tristezas. No meio do relato, ressalta a figura de Ana, mulher que amou e conheceu em um dos múltiplos empregos que teve.

Há que se prestar atenção à narrativa de Arábia. Ela é feita quase todo o tempo em off, a voz do trabalhador, na leitura que é feita do seu diário. Este é a descrição de uma vida, pelo ponto de vista de quem a viveu, isto é, parcial, como qualquer relato. Ele fala da prisão na juventude, depois como põe o pé na estrada em busca de um lugar no mundo. Lugar que será sempre problemático, e vai mudando ao sabor das oportunidades. Faz um pouco de tudo. Colhe mexericas numa fazenda, emprega-se numa tecelagem, ajuda na reforma de um bordel, dirige caminhão, etc. Cristiano é um típico trabalhador não especializado no Brasil, buscando chances de sobrevivência lá e cá, dormindo onde for possível, vivendo da mão para a boca.

Os momentos de felicidade são poucos. E, por isso, ele os guarda como joias preciosas. Um deles, em particular. À tarde, num parque de diversões, ele começa a namorar a mulher de sua vida, Ana. "Daria tudo para voltar a essa tarde, a esse parque", escreve em seu diário. Inútil, porque o tempo não volta, a não ser no processo de escrita, que o registra mas não o resgata.

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O tom geral é melancólico, embora haja momentos de respiro e de alegria. Exemplos, as rodas de bar entre amigos, música, algumas conversas muito engraçadas, como a que ele tem com um colega mais velho sobre qual tipo de carga é a a mais dura de carregar nos ombros. Cimento? Café? Telha? "Carregar porco vivo é o que há de pior no mundo", conclui o colega mais experiente.

Arábia soma os encantos de um filme de estrada à reflexão sobre a precarização do mundo do trabalho. Seu personagem é comovente em sua crescente consciência sobre a falta de sentido do mundo em que vive e no qual apenas sobrevive. Sem ser panfletário em qualquer momento, o filme é político nas entrelinhas e em sua concepção geral. Emocionamo-nos com ele. E ele nos faz pensar sobre o mundo e o país em que vivemos e como nele são tratadas as pessoas mais humildes.

Do ponto de vista do equilíbrio cinematográfico, talvez seja o mais sólido dos nove longas-metragens apresentados na mostra competitiva.

Curta. Em A Passagem do Cometa, Juliana Rojas também prefere a sutileza. Ambientado na década de 1980, tem por cenário uma clínica clandestina de abortos. A médica (Gilda Nomacce) atende a uma cliente. Esta vem com uma acompanhante, que fica conversando com a secretária da clínica enquanto o procedimento é feito. Mais uma figura feminina se junta ao grupo - uma paciente que teve um sangramento inesperado. Estamos num universo apenas feminino. As mulheres estão sós, mas não se queixam. Numa atmosfera tcheckoviana, o que não é dito tem mais valor do que aquilo que se fala. Algumas dessas mulheres esperam observar o Cometa Haley, que passará pelo céu naquela noite e refletem sobre como será o mundo quando o cometa voltar 70 anos depois. Os dramas humanos se desenrolam sob a mais absoluta indiferença do Cosmo, o que só os torna mais pungentes. Um lindo filme.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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