Luiz Zanin Oricchio
29 de setembro de 2016 | 19h28
Marcado do princípio ao fim por protestos contra o governo de Michel Temer, o Festival de Brasília termina sob o signo de uma dissonância interna. Enquanto o júri oficial escolhe como vencedor a ficção intimista A Cidade Onde Envelheço, de Marília Rocha, o público, aplaudindo em pé, consagra o engajado documentário Martírio, de Vincent Carelli.
Ora, não é raro em festivais que júri popular e oficial divirjam. Mas poucas vezes se viu divisão tão aprofundada quanto nesta 49ª edição do mais antigo festival de cinema do país.
A cerimônia já começou com anticlímax, quando para Martírio foi anunciado o Prêmio Especial do Júri, considerado uma espécie de prêmio de consolação, com valor de uma menção honrosa. Jogou o clima da noite no chão.
Após o início frustrante, foram sendo anunciados os prêmios. A Cidade onde Envelheço ficou com quatro troféus Candango – os de melhor filme, direção (Marília Rocha), atriz (dividido entre Elizabete Francisca e Francisca Manuela) e ator coadjuvante (Wederson Neguinho). O filme é simpático e bem construído do ponto de vista narrativo. Fala das experiências de duas jovens portuguesas que decidem morar em Belo Horizonte e fazem curiosas observações sobre o Brasil. Seu tom, mais feminino que feminista, deve ter tocado fundo um júri composto em sua maioria por mulheres. Ao não premiar Martírio, no entanto, perdeu a oportunidade de entrar em sintonia com o clima de uma edição histórica e politizada do festival.
O expressivo “faroeste” gaúcho Rifle, visão original sobre o conflito pela terra no País, ficou com roteiro e som, além de levar o prêmio da crítica, dado pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema).
O supervalorizado O Último Trago Ficou com os troféus de atriz coadjuvante (Samya de Lavor), fotografia e montagem. O delicado documentário sobre casais cubanos, Vinte Anos, levou apenas o de trilha sonora enquanto o intenso Elon Não Acredita na Morte ficou com o troféu de melhor ator (Rômulo Braga). O melhor curta-metragem foi a animação Quando os Dias Eram Eternos.
E a entrega de prêmios seguia em batida monótona no Cine Brasília até que foi anunciado o prêmio do Júri Popular para Martírio, densa e contextualizada imersão no genocídio dos Guarani-Kaiowá. Aí a plateia acordou. O filme, já consagrado com vários minutos de aplausos quando de sua exibição, repetiu a experiência na premiação. Foi o momento mais emocionante da noite.
Outro foi a entrega da recém-criada medalha Paulo Emilio Sales Gomes ao homenageado, o crítico, professor da USP e ator Jean-Claude Bernardet, que completou 80 anos este ano. Membro da equipe de Paulo Emilio, que fundou o curso de Cinema na UnB e deu início ao Festival de Brasília em 1965, Bernardet lembrou que, naquela ocasião, a então chamada Semana do Cinema Brasileiro nascia como resistência a um golpe de Estado. E agora, meio século depois, o festival repetia sua vocação contestatória, cultivando o germe da resistência ao novo golpe. Foi aplaudido de pé, por vários minutos.
Pelas circunstâncias, Brasília 2016 foi o festival mais político dos últimos tempos. Em todas as sessões houve algum tipo de manifestação contra o golpe e o governo Temer. Autoridades não deram as caras por lá, por motivos compreensíveis. As vaias seriam certas.
As manifestações eram tantas que iam até caindo na rotina, e se modificando ao longo dos dias. O Fora Temer às vezes ganhava acréscimo e ficava como Eternamente Fora Temer. Muitos lembravam do partido e gritavam Fora PMDB, esse imenso cupim da política brasileira. E era tamanha a unanimidade que muita gente também começou considerar as manifestações meio inócuas.
Jean-Claude, que subiu ao palco para receber sua homenagem com a camiseta Cinema Contra o Golpe, considerou que o festival era uma bolha. E que as manifestações não poderiam se esgotar ali. Já eu acho que elas são embrião para uma atitude de resistência, que deve se sustentar alguns anos, pelo menos, já que os objetivos do golpe parecem ser não apenas tomar o poder e anular algumas biografias, mas inviabilizar qualquer alternativa futura de esquerda ou popular.
Ou seja, há muito trabalho pela frente, mas, se consolo há, é que a Cultura está na linha de frente. A Cultura mesmo, não os burocratas da Cultura, entenda-se.
Premiação: forma simplificada
Longa
A cidade onde Envelheço. Melhor filme, Direção (Marilia Rocha), Atriz (Elizabete Francisca e Francisca Manuela), Ator coadjuvante (Wederson Neguinho)
Rifle. Roteiro, Som, critica
Elon não acredita na Morte. Ator (Rômulo Braga)
Vinte Anos. Trilha sonora,
Deserto. Direção de arte
Martírio. Prêmio Especial do Júri. Júri popular
O Último Trago. Atriz coadjuvate, (Samia de Lavor), Fotografia, Montagem
Curta
Quando os dias eram Eternos. Melhor Filme, Trilha sonora
Constelações. Ator (Renato Novais Oliveira)
Estado Itinerante. Atriz (Lira Ribas), Crítica, Prêmio Especial do Júri
Demônia – Melodrama em três atos. Montagem
Confidente. Som
Delírio, a Redenção dos Aflitos. Direção (Fellipe Fernandes), Roteiro, Direção de arte
Solon. Fotografia
Procura-se Irenice. Júri popular
Premiação completa:
49º FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO
20 a 27 de setembro de 2016
PREMIAÇÃO 2016
PRÊMIOS OFICIAIS
FILME DE LONGA-METRAGEM
Melhor Filme de longa-metragem – R$ 100 mil
A cidade onde envelheço, de Marília Rocha
Melhor Direção – R$ 20 mil
Marília Rocha, por A cidade onde envelheço
Melhor Ator – R$ 10 mil
Rômulo Braga, por Elon não acredita na morte
Melhor Atriz- R$ 10 mil
Elisabete Francisca e Francisca Manuel, por A cidade onde envelheço
Melhor Ator Coadjuvante – R$ 5 mil
Wederson Neguinho, por A cidade onde envelheço
Melhor Atriz Coadjuvante – R$ 5 mil
Samya de Lavor, por O último trago
Melhor Roteiro – R$ 10 mil
Davi Pretto e Richard Tavares, por Rifle
Melhor Fotografia – R$ 10 mil
Ivo Lopes, por O último trago
Melhor Direção de Arte – R$ 10 mil
Renata Pinheiro, por Deserto
Melhor Trilha Sonora – R$ 10 mil
Pedro Cintra, por Vinte anos
Melhor Som – R$ 10 mil
Marcos Lopes e Tiago Bello, por Rifle
Melhor Montagem – R$ 10 mil
Clarissa Campolina, por O último trago
Prêmio Especial do Júri Oficial:
Pelo rigor na abordagem e contextualização de uma tragédia brasileira que dura séculos, pela emoção no desenho de uma etnia espoliada e desterritorializada, tema da curadoria desse festival, o prêmio especial vai, por unanimidade, para
Filme: Martírio, de Vincent Carelli em colaboração com Ernesto de Carvalho e Tita
FILME DE CURTA OU MÉDIA-METRAGEM
Melhor Filme de curta ou média metragem – R$ 30.000,00
Quando os dias eram eternos, de Marcus Vinicius Vasconcelos
Melhor Direção – R$ 10.000,00
Fellipe Fernandes, por O delírio é a redenção dos aflitos
Melhor Ator – R$ 5.000,00
Renato Novais Oliveira, por Constelações
Melhor Atriz – R$ 5.000,00
Lira Ribas, por Estado Itinerante
Melhor Roteiro – R$ 5.000,00
Fellipe Fernandes, por O delírio é a redenção dos aflitos
Melhor Fotografia – R$ 5.000,00
Ivo Lopes Araújo, por Solon
Melhor Direção de Arte – R$ 5.000,00
Thales Junqueira, por O delírio é a redenção dos aflitos
Melhor Trilha Sonora – R$ 5.000,00
Dudu Tsuda, por Quando os dias eram eternos
Melhor Som – R$ 5.000,00
Bernardo Uzeda, por Confidente
Melhor Montagem – R$ 5.000,00
Allan Ribeiro e Thiago Ricarte, por Demônia – Melodrama em 3 atos
Premio Especial do Júri
Estado Itinerante, de Ana Carolina Soares
PRÊMIO DO JÚRI POPULAR
filmes escolhidos pelo público, por meio de votação em cédula própria:
Melhor Filme de longa-metragem – R$ 40 mil
Martírio, de Vincent Carelli em colaboração com Ernesto de Carvalho e Tita
Melhor Filme de curta ou média-metragem – R$ 10 mil
Procura-se Irenice, de Marco Escrivão e Thiago Mendonça
OUTROS PRÊMIOS
TROFÉU CÂMARA LEGISLATIVA DO DISTRITO FEDERAL – JÚRI OFICIAL
Melhor Filme de longa-metragem: R$ 80 mil
Catadores de história, de Tânia Quaresma
Melhor Filme de curta-metragem: R$ 30 mil
Rosinha, de Gui Campos
Melhor Direção: R$ 12 mil
Vladimir Carvalho, por Cícero Dias, o compadre de Picasso
Melhor Ator: R$ 6 mil
Edu Moraes, de A repartição do tempo
Melhor Atriz: R$ 6 mil
Maria Alice Vergueiro, de Rosinha
Melhor Roteiro: R$ 6 mil
Vladimir Carvalho, por Cícero Dias: o compadre de Picasso
Melhor Fotografia: R$ 6 mil
Waldir de Pina, de Catadores de história
Melhor Montagem: R$ 6 mil
Marcius Barbieri, Rafael Lobo e Santiago Dellape, por A repartição do tempo
Melhor Direção de Arte: R$ 6 mil
Andrey Hermuche, de A repartição do tempo
Melhor Edição de Som: R$ 6 mil
Micael Guimarães, de Cora Coralina – todas as vidas
Melhor Trilha Sonora: R$ 6 mil
Dimir Viana, André Luiz Oliveira, Renato Matos, Claudio Vinícius e GOG, por Catadores de história
TROFÉU CÂMARA LEGISLATIVA DO DISTRITO FEDERAL – JÚRI POPULAR
Melhor filme de longa-metragem: R$ 20 mil
Cora Coralina – todas as vidas, de Renato Barbieri
Melhor filme de curta-metragem: R$ 10 mil
Das raízes às pontas, da diretora Flora Egécia
PRÊMIO ABCV – ASSOCIAÇÃO BRASILIENSE DE CINEMA E VÍDEO
Conferido pela ABCV – Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo a profissional do audiovisual do Distrito Federal
Mallu Moraes (atriz)
PRÊMIO CANAL BRASIL
Cessão de um Prêmio de Aquisição no valor de R$ 15 mil e o troféu Canal Brasil
Melhor Filme de curta-metragem selecionado pelo júri Canal Brasil
Filme: Estado itinerante, de Ana Carolina Soares
PRÊMIO ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema)
Melhor Filme de longa-metragem
Pela hábil conexão entre a gramática do documentário e da ficção. Pelo retrato que conjuga a perspectiva de um personagem com as transformações de um Brasil rural. Pela apropriação original da estética do western e o uso potente do som.
Filme: Rifle, de Davi Pretto
Melhor Filme de curta-metragem
Pela sensibilidade na forma com que filma os espaços urbanos. Pela qualidade do trabalho das atrizes, com experiência profissional ou não. Pela forma com que retrata uma violência física e simbólica, valorizando o que está fora de quadro.
Filme: Estado Itinerante, de Ana Carolina Soares.
PRÊMIO SARUÊ
Conferido pela equipe de cultura do jornal Correio Braziliense
No apanhado de filmes selecionados pelo festival, vimos de catadores de lixo a imigrantes em crise, a questão do empoderamento feminino e de gênero, passando por índios batalhadores e artistas órfãos de público. Não faltaram também a disputa pela terra e os cubanos num país em transição. Foi, entretanto, outro grupo de excluídos que chamou a atenção da equipe do Correio: o mérito de melhor momento do festival agrupou libertários representantes da terceira idade, com enorme capacidade de amar, de resistir ao descaso social.
Gui Campos, pelo curta Rosinha!
PRÊMIO MARCO ANTÔNIO GUIMARÃES
Conferido pelo Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro para o filme que melhor utilizar material de pesquisa cinematográfica brasileira
Filme: Martírio, de Vincent Carelli em colaboração com Ernesto de Carvalho e Tita
PRÊMIO CONTERRÂNEOS
Troféu oferecido pela Fundação CineMemória
Melhor Documentário do Festival
Filme: Vinte anos, de Alice Andrade