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Cinema, cultura & afins

Opinião|Bonitinha mas Ordinária

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Nelson Rodrigues é risco assumido no cinema. A chance de errar é altíssima, em razão de um texto expressionista, exagerado, que busca os tais desvãos da alma humana sem temer o apelo à caricatura. São tragédias que ficam a um milímetro do ridículo. Risco certo, mas que os cineastas adoram assumir. O mais recente destemido é Moacyr Góes, cujo currículo anterior em cinema não é de molde a recomendar (Dom, Maria, a Mãe do Filho de Deus, alguns filmes da Xuxa, etc.)

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Pois bem, e não é que a Bonitinha de Moacyr Góes revela-se bastante aceitável? Mais que isso, é um bom filme, embora cultores ortodoxos de Nelson possam, com certa razão, queixar-se de que ele depurou o texto, numa versão em que imperam o bom gosto e certa assepsia. Argumento aceito, pode-se responder: e daí? Bonitinha continua sendo um bom filme e um texto poderoso. Sai-se bem atualizando essa "tragédia carioca", montada pela primeira vez em 1962.

Ora, Bonitinha é uma tragédia de desfecho feliz, uma contradição em termos. Mas na verdade a réstia de luz entrevista no desfecho é conseguida a troco de muita treva durante todo o desenvolvimento da trama. Moacyr Góes acerta ao antever essa luminosidade do fim ao longo de todo o filme. É sua leitura, aceitável mesmo porque condizente com o texto. Além do mais, faz de Peixoto, um personagem mais digno e ambíguo do que se poderia prever.

A história é bem conhecida. Um industrial precisa arranjar casamento de conveniência para a filha, Maria Cecília (Letícia Colin), estuprada por cinco homens negros. Peixoto (Leon Góes, irmão do diretor) é encarregado de fazer a oferta ao pobretão Edgard (João Miguel), apaixonado pela também suburbana Ritinha (Leandra Leal). Um cheque de cinco milhões está disponível para Edgard se casar com Maria Cecília, a Bonitinha, e então salvar-lhe a honra.

Há algumas coisas que parecem datadas; fazia mais sentido no Brasil dos anos 50 0u 60 a compra de um genro para salvar a dignidade de uma moça de família deflorada nessas condições. Assim como o mal-estar ambiente da peça era o do pós-guerra, com o perigo do cataclismo atômico rondando a humanidade. Moacyr traz a trama para a atualidade e se o mundo já não teme morrer pela via nuclear, vive uma época de paranoia generalizada que nada fica a dever àquele tempo. Se a nenhum ricaço ocorre fazer o mesmo que tenta o dr. Werneck (Gracindo Jr.), é verdade que o falso moralismo impera e a dúbia ética das elites é tão perceptível quanto a atmosfera poluída das cidades. Nesse conjunto o dilema moral de Edgard encontra sentido. E atualidade.

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O elenco é afinadíssimo. Não se poderia esperar menos de João Miguel, Leandra Leal e Gracindo Jr. Leon Góes, no entanto, supera-se e confere humanidade ao rematado canalha que interpreta. E a grande surpresa atende pelo nome de Letícia Colin, que faz uma Bonitinha intensa e ousada, sedutora e frágil, em sua sensualidade. O conjunto compensa deslizes como a bacanal trash do dr. Werneck ou os pouco convincentes flashbacks da curra. Nada é perfeito. Mas é bem aceitável.

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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