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Cinema, cultura & afins

Opinião|Babel

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Um casal de americanos passeia pelo Marrocos, ela leva um tiro e o marido tem de fazer o diabo para conseguir salvar sua vida em terra tão inóspita. Nos Estados Unidos, uma babá mexicana vê-se obrigada a atravessar a fronteira com as duas crianças americanas de que toma conta para comparecer a um casamento da família. Na volta, enfrenta sérios problemas. No Japão, uma surda-muda tem um pai que é procurado pela polícia de Tóquio. São essas as tramas que se tecem em Babel, filme americano do diretor mexicano Alejandro González Iñárritu, que acaba de ganhar o Globo de Ouro e é um dos favoritos ao Oscar.

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Não é a primeira vez que Iñárritu se mete em tramas entrelaçadas. Aliás, ele estreou assim, com o surpreendente Amores Brutos, filme também estruturado sobre acidentes, traumas, desastres pessoais que se refletem um sobre os outros. Tudo está em contato com tudo. Tudo está conectado, como se costuma dizer por aí. Iñárritu acredita, sim, que todo o sofrimento esteja conectado. É quase como um pressuposto daquilo que filma.

Diga-se de passagem que essa estratégia não é nova (nada é novo) e aparece, por exemplo, de Antes da Chuva, de Mincho Manchevski, e Short Cuts, de Robert Altman. Histórias paralelas, que em algum momento acabam se cruzando. Como se dissessem, não apenas que tudo está em contato com tudo, mas que todos fazemos parte de uma mesma família humana e que, portanto, nada nos é estranho, nem a Guerra no Iraque, nem o glamour de Hollywood, nem a fome na África...Todos humanos, e o cinema nos recorda.

Mas nos diz também - e esse é o caso de Babel - que estamos juntos num mundo desacertado. Por isso, uma família de camponeses marroquinos pode comprar um rifle para defender seu rebanho, sem saber que ele será usado por uma das crianças da casa e isso terá conseqüências dramáticas. Também um casal que parte em férias, Susan (Cate Blanchett) e Richard (Brad Pitt) não pode saber que o passeio vai se transformar em pesadelo. Num outro canto do mundo, a babá mexicana Amelia (Adriana Barraza) acha que pode cruzar impunemente a fronteira em companhia de duas crianças, e que pode confiar na responsabilidade do seu sobrinho, Santiago (Gael García Bernal). Em outra latitude e longitude, um homem, viúvo, procura estabelecer algum tipo de comunicação com sua filha surda-muda, que tem sua própria maneira de relacionar-se com a vida.

Babel é mais uma colaboração entre Iñárritu e seu roteirista Guillermo Arriaga, parceria que começou com Amores Brutos e continuou com 21 Gramas. Babel talvez tenha sido o último da sociedade, uma vez que diretor e roteirista andaram brigados, por uma dessas ciumeiras que o sucesso traz. Questão de crédito e responsabilidade nesse tipo de criação coletiva que é o cinema, mas cuja autoria costuma ser atribuída somente ao diretor, esse demiurgo que tiraria um filme do nada, dando-lhe vida com um deus. Bem, esse tipo de briga faz parte da história do cinema e, é bom lembrar, houve gente (ninguém menos que a crítica norte-americana Pauline Kael) defendendo que o verdadeiro 'autor' de Cidadão Kane seria não Orson Welles mas seu injustamente esquecido roteirista Herman Mankiewski.

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Fato é que Arriaga escreve suas histórias muito bem, mas nem ele, num filme de episódios interligados, escapa à sina da disparidade de qualidade entre elas. Assim, em Babel, é a trama no Marrocos que parece dar mais certo e causar melhor impressão. Mesmo porque ela se combina em duas frentes. De um lado temos a situação aflitiva do casal americano, ela atingida por uma bala. Por outro, a coisa vista pelo lado dos marroquinos. Uma estrutura patriarcalista, na qual o fato de um dos meninos ter visto a irmã nua, durante um banho, parece tão grave quanto um deles haver disparado seu rifle 'de brincadeira' contra um ônibus de turistas.

Não é o menor mérito de Iñárritu como de Arriaga terem evitado uma leitura preconceituosa, que oporia os brancos civilizados x árabes primitivos. Uma sinopse superficial da história pode dar esse tipo de leitura. Mas o filme indica outra coisa, uma sensação de estranhamento, que relembra, em alguns momentos, a literatura de Paul Bowles (de O Céu Que nos Protege), ele também um ocidental que procura o exótico, o Outro, em busca de alguma coisa que não encontra em sua própria civilização. Há algo dessa carência em Susan e Richard, que encontram esse desamparo diante do que não se conhece mas ao mesmo tempo uma insuspeita solidariedade. Há toques de muita delicadeza na maneira como Richard e sua aflição são acolhidos em uma paupérrima aldeia no meio do deserto.

Também não é nada má a história que se passa entre Tijuana e Los Angeles, ainda mais porque põe em xeque a questão da fronteira entre México e Estados Unidos, uma das linhas quentes do planeta. Também aqui há uma recusa em fazer dos personagens meras figuras ou estereótipos. Amelia, as crianças, Santiago, são personagens patéticos do mundo dito global, onde mercadorias e divisas circulam com toda a liberdade, mas pessoas vêem-se limitadas por passaportes, vistos e até muros, como é o caso da fronteira entre aqueles dois países. O sentimento mexicano a respeito está bem expresso no filme, é uma assinatura, por assim dizer.

Já o episódio japonês, sem ser de maneira nenhuma ruim, destoa um pouco dos outros dois. Isolado, seria ótimo. No contexto do filme, diminui-se um pouco.

Esse, aliás, é o problema de Babel - as conexões entre as diferentes narrativas parece um tanto frágil. Elas não se soldam com a naturalidade de um Antes da Chuva e muito menos de um Short Cuts, para comparar com os dois filmes com os quais mantém parentesco estrutural. As costuras ficam um pouco visíveis demais e isso contribui para enfraquecê-lo.

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Mas não a ponto de fazer de Babel algo menos do que um ótimo filme. Um sincero retrato desse mundo multilingüístico e multicultural, condenado à coexistência mas que ainda não encontrou um modo razoável de fazê-lo.

(SERVIÇO)Babel (Babel, EUA, 2006, 142 min.). Drama. Dir. Alejandro Gonzáles Iñárritu. 16 anos. Grande circuito. Cotação: Ótimo

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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