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Opinião|As ruínas circulares

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

O título desse post é o de um conto de Jorge Luis Borges, autor com lugar cativo em meu altar particular. Como sabem seus leitores, Borges tinha algumas obsessões (tigres, facas, labirintos) e, entre elas, o tempo. Falou (escreveu) muito sobre o tempo, inclusive sobre o enigma do tempo circular. Do eterno retorno, como dizia Nietzsche. Escreveu sobre isso em A História da Eternidade. Em particular, em dois ensaios, A Doutrina dos Ciclos e O Tempo Circular. Não quero entrar aqui nos meandros da erudição borgiana. Apenas quero constatar um pequeno incômodo psicológico que, acredito, se deva ao (necessário e inevitável) confinamento social devido à pandemia. Completamos um ano de confinamento.   

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Sinto um pouco o sintoma dessa circularidade. Como se os referenciais de tempo fossem sendo apagados e tudo parecesse voltar, de forma cíclica e cada vez mais rápida. Por exemplo, sempre me surpreendo quando chega a sexta-feira, assinalando o final de mais uma semana. Já?!, me espanto. Mas afinal, por quê seria espantoso se, no fim das contas, todos os dias se parecem entre si e não se distingue mais um sábado de uma segunda-feira?

Não é que me queixe da rotina. Ela é até bastante cômoda. E, sim, a cada dia há novidades. Coisas boas, em meio ao pavoroso noticiário sobre o nosso país. Livros para ler, textos para escrever, filmes para ver. Todos diferentes entre si. Novos. Mas os atos de rotina são os mesmos. Ler, escrever, assistir. É como se esses diferentes fossem sendo digeridos pelos atos recorrentes e resultassem numa pasta única e informe, sem outros referentes externos para marcá-los. Por exemplo, não há mais a experiência de ter ido a um determinado cinema, visto um filme e depois tomado um cafezinho com um amigo que se encontrou por acaso na saída. Ou ido a uma livraria, pescado um livro na prateleira, comprado e depois lido. Tudo é doméstico. O filme chega pelo streaming, o livro pela compra online, ou pelo download do e-book.  

Aos poucos, após um ano de confinamento, vamos perdendo a noção da passagem do tempo. Claro, objetivamente tudo passa, tudo é diferente, os processos parecem em marcha, ainda que em passos de cágado. Mas a sensação psicológica é de imobilismo. De prisão numa sucessão indefinida de acontecimentos que se parecem entre si, uma rotina circular, um carrossel de pesadelo, uma fita de moebius, sem frente ou verso, em que sempre voltamos ao mesmo ponto, como as formiguinhas no famoso desenho de Escher. 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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