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Cinema, cultura & afins

Opinião|As mulheres de Mizoguchi

Da "santíssima trindade" do cinema japonês, Kenji Mizoguchi (1898-1956) talvez seja ainda o mais desconhecido do grande público brasileiro. Akira Kurosawa é, por certo, o de maior sucesso. Respeita-se Yasujiro Ozu pelo rigor e emoção serena. Já de Mizoguchi pouco se viu, com exceção de obras mais em evidência, como Contos da Lua Vaga Depois da Chuva (1953), O Intendente Sansho (1954) e Os Amantes Crucificados (1954).

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Daí a importância dos lançamentos em DVD de Utamaro e Suas Cinco Mulheres e Mulheres da Noite (R$ 49,90 cada um, no site www.lumefilmes.com.br). Os filmes são de 1946 e 1948, respectivamente, portanto produzidos no quadro do pós-guerra japonês. Mas essa situação só é diretamente retratada em Mulheres da Noite. Nele, Mizoguchi mergulha no universo da prostituição com os olhos do crítico social. Os planos iniciais do filme - a cidade imensa, arruinada, porém preste a engolir seus habitantes - já mostra o que virá: imagens de seres humanos desesperados, em busca de dinheiro, vendendo o que tiverem à mão para sobreviver. No caso, o próprio corpo.

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Trata-se de visão nada amistosa da prostituição. Passa longe de considerações contemporâneas e bem mais amenas, do tipo Bruna Surfistinha. No pós-guerra japonês, aquela vida nada tinha de fácil. As moças lutavam para viver e guerreavam-se entre si, em meio a outra luta, esta contra a doença, a sífilis. Uma rara figura humanista é a do médico que atende as garotas no ambulatório. Essa é uma característica do cinema social. A vida deve ser retratada impiedosamente, mas, mesmo num universo hobbesiano, subsistem nuances entre as pessoas, do contrário qualquer saída seria impossível.

Em Utamaro a situação parece outra, como diversa é a época escolhida para a ambientação. Mas será, de fato, muito diferente? Utamaro é o nome de um pintor do século 18, rebelde às convenções artísticas do seu tempo. Retratista de mulheres, o que traz de volta o tema preferencial de Mizoguchi - a mulher, oprimida no mundo machista da sociedade japonesa. Utamaro vai em busca da gueixa ideal que lhe sirva de modelo. Mas não só isso. Ao encontrá-la, pede que seja também o suporte físico para a tela. A imagem será pintada em sua pele e, em seguida, tatuada para que dure para sempre.

Ora, nada é eterno, menos ainda uma imagem tatuada sobre um corpo mortal. Essa ilusão do perene é própria da arte. Contudo, o engano de Utamaro não deixa também de dizer muito sobre a natureza instrumentalizada do corpo feminino em determinada época e sociedade. Ela é, a um tempo, modelo e suporte, para a suposta eternização de uma arte masculina. Os papeis estão aí bem demarcados, e Utamaro, um artista, não é mais que veículo de uma mentalidade, da qual faz parte e vai além dele.

Mas há aí uma sutil inversão. Trabalhando no interior dessa sociedade machista, Mizoguchi desloca o eixo e coloca as mulheres, por oprimidas que sejam, no centro da narrativa. Utamaro dá título ao filme, no entanto são suas modelos que protagonizam o foco narrativo.

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Mulheres e dinheiro - já se disse que são as duas obsessões de Mizoguchi. Como Balzac, Mizoguchi é obcecado pela influência do dinheiro (ou da falta dele) na vida humana. É essa busca do absoluto, como dizia o escritor francês em uma de suas obras, que movimenta a vida em sociedade e transforma seres humanos em coisas. Esse é o dado social, que não escaparia à percepção de um artista como Mizoguchi. Mas influi também a questão biográfica. Uma de suas irmãs foi dada a outra família para ser criada e seus pais adotivos a venderam como gueixa. Ele nunca se esqueceu. Seu trabalho seguido de denúncia sobre a posição subalterna da mulher parece a forma encontrada para exorcizar o episódio.

Cineasta prolífico, Mizoguchi é autor de mais de 70 longas-metragens. Parece incrível que, fazendo tantos filmes, tenha conseguido concentrar-se em cada um deles a ponto de atingir rara depuração da forma cinematográfica. Sua câmera móvel, porém de deslocamentos sutis, desenha planos rigorosamente compostos. É trabalho de cineasta e também de pintor. Esse artista não se contenta com o mero conteúdo social de suas obras. Ele trabalha a matéria do tema numa forma lapidada, em que as imagens parecem não sobrar nem faltar.

Quando seu cinema foi descoberto no Ocidente, provocou grande comoção. Jean-Luc Godard o tinha na conta de mestre e quando visitou o Japão nos anos 60, já como cineasta famoso, disse que não poderia atender a ninguém antes de cumprir um dever - depositar uma flor no túmulo de Mizoguchi, em Kioto. O curioso é que, anos mais tarde, Wim Wenders repetiu o gesto, agora em homenagem a Ozu, conforme descreve em seu Tokyo-Ga (1987). Há uma profundidade misteriosa nesses mestres orientais. Algo que desconcerta e inspira.

(Cultura, 26/4/09)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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