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Opinião|Aruanda 2019: 'Pacificado' ou a tragédia social brasileira

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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JOÃO PESSOA - Numa sessão movimentada, Flávio Bauraqui cantou Juízo Final, de Nelson Cavaquinho, mestre Vladimir Carvalho apresentou seu filme novo, sobre o dirigente comunista Giocondo Dias, e o último concorrente, Pacificado, foi mostrado ao público. Houve também os curtas Costureiras, A Ética das Hienas e O Grande Amor de um Lobo. Ufa! 

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O canto de Bauraqui, grande ator homenageado, resume as aspirações expressas ao longo do festival: "O sol há de brilhar mais uma vez/A luz há de chegar aos corações/Do mal, será queimada a semente/O amor será eterno novamente". O gênio de Nelson Cavaquinho diz tudo que precisamos ouvir. Vivemos tempos de trevas, mas elas um dia chegarão ao fim. Tomara que seja logo. E que tenhamos energia para resistir até lá. 

De resistência tratou Giocondo Dias - Ilustre Clandestino, filme em reverência ao dirigente comunista (1913-1987). O título se justifica: segundo um dos depoentes, Giocondo viveu mais de um terço da sua vida na clandestinidade. Ou no exílio. 

Trata-se basicamente de um filme de depoimentos, o que se justifica em razão da (compreensível) escassez de imagens do personagem. Alguns desses depoimentos, de antigos companheiros e amigos, reconstituem passagens da vida de Giocondo, como a fuga para Argentina quando perseguido pela ditadura.

Há uma linha fina, que percorre o documentário, e se refere à posição do PCB, contrário à luta armada. Foi uma discussão longa e talvez fratricida entre a esquerda brasileira: resistir à ditadura com armas na mão ou pela via democrática? Giocondo Dias foi partidário ferrenho desta segunda opção, endossada por Vladimir. Mas várias foram as dissidências, dentro mesmo do Partidão - a mais notória, a de Carlos Marighella, que saiu para fundar a ALN (Aliança Libertadora Nacional) e morreu assassinado em 1969. Outra, a de Jacó Gorender, que lutou pelo PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário) e é autor do livro fundamental Combate nas Trevas, sobre a luta armada no país. 

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Perguntei a Vladimir sobre uma frase de Gorender. De acordo com ele, a esquerda brasileira pegou em armas quando não tinha condições de fazê-lo - em 1935 e em 1968 em diante - e não quando deveria, em 1964, quando poderia ter resistido ao golpe que conduziu o país à sua longa ditadura de 21 anos. 

Vladimir preferiu não responder, mas exaltou-se quando alguém questionou a presença, em seu filme, de figuras como Aloysio Nunes Ferreira (do PSDB) e Roberto Freire, que criou o PPS em substituição ao Partido Comunista. 

A exaltação fez bem ao cineasta de 84 anos, que proferiu um belo discurso contra o atual estado de coisas e citou o espírito democrático de Giocondo Dias em contraste com um presidente que deseja fundar um partido com número de calibre de revólver (38) e apresenta ao público um logotipo formado por balas de fuzil. "A essas ameaças de guerra devemos responder pela paz", disse Vladimir, fortemente aplaudido.  

Quanto a Pacificado, dirigido por Paxton Winters e ambientado no Morro dos Prazeres, no Rio de Janeiro, já foi chamado de "Poderoso Chefão" carioca. Como quase sempre, esse tipo de comparação contém algo de verdadeiro e alguma simplificação. De fato, Jaca (Kabengele Bukassa) é o personagem que volta para a sua comunidade depois de cumprir 14 anos de cadeia. Encontra o morro chefiado por seu sucessor (José Loreto) e tenta apenas refazer a vida e viver sossegado. Reencontra-se com a ex-mulher (Débora Nascimento) e a filha (Cassia Nascimento). 

Paxton é norte-americano mas Pacificado não tem nada de filme de gringo. Mora há nove anos no Brasil e, mais especificamente, no Morro dos Prazeres. 

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Ambienta sua história no encerramento das Olimpíadas de 2016, véspera da desocupação dos morros e favelas pela polícia pacificadora. Como tudo no Brasil, essa também foi uma medida cosmética, destinada a proteger os turistas da população tida como perigosa. Portanto, quando Jaca é solto, reencontra uma situação prestes a se reacomodar em sua comunidade. 

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As tensões sociais não são maquiadas e nem mesmo as familiares. Débora Nascimento interpreta Andréa, uma mulher jovem mas com sérios problemas com drogas. Jaca tem dúvidas sobre a paternidade de Tati (Cassia Gil) e recebe seguidos pedidos para reassumir a posição de chefe do morro, pois ninguém aguenta a truculência de Nelson (José Loreto). Uma figura da estabilidade é a avó, vivida por Léa Garcia. O contrário é seu neto, Dudu (Raphael Logan), irmão de Jaca, atormentado pela depressão. 

Filmado de maneira enérgica, com muita câmera na mão, Pacificado escapa ao clichê de "favela movie" e se coloca como mais um testemunho da tragédia social brasileira. Evita tanto a catarse como a redenção, propondo um desfecho inquieto. O filme venceu o importante Festival de San Sebastián, na Espanha.   

Esta noite serão conhecidos os vencedores do 14º Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro. 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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