PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|Armênia

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Não parece errado quem diz que Armênia não tem a mesma força de trabalhos anteriores de Guédiguian - de A Cidade Está Tranqüila, em particular. Neste filme, dilacerante, feito em Marselha, o diretor não fazia qualquer concessão na tragédia da mãe que fornecia drogas à filha que não poderia passar sem elas. Tocava no âmago do desespero humano. Já Armênia talvez seja mais comercial, mais redondo e palatável, mas nem por isso deixa de ser um belo e bom filme.

PUBLICIDADE

O diretor, que tem origem armênia, se propõe uma viagem de reencontro com suas raízes. Ele o faz através do seu alter ego feminino, a atriz (e sua companheira) Ariana Ascaride, que fazia a mãe em A Cidade Está Tranqüila. Ela é médica, quer que o pai, doente, seja submetido a uma cirurgia. Ele foge para a Armênia; Anna vai atrás. Há um tanto de rocambolesco na maneira como Anna penetra na sociedade armênia. Ela, uma francesa a 100%, nunca havia dado muita bola a essa história de raízes e, no entanto...é muito difícil manter-se indiferente num lugar que lhe parece estranho e familiar ao mesmo tempo.

O filme consegue expor essa sensação muito freqüente em filhos de imigrantes quando entram em contato com o país de origem da família. Podem não conhecer a língua, mas não demoram muito a aprendê-la porque a ouviram na infância. Conhecem os costumes, ou parte deles, porque fizeram parte de sua vida, mas já numa versão modificada pela adaptação ao país de destino da família. Tudo convida a uma acomodação fácil da percepção, mas ainda assim causa certo desconforto. Ao mesmo tempo, quem já viveu essa experiência sabe que a pessoa tem a sensação de que nunca está tão próxima do seu próprio eixo como quando pisa o solo dos seus pais.

Essa é uma sensação curiosa, mas que talvez atenue certa inverossimilhança de Armênia, que se poderia creditar ao suposto comercialismo do filme. De fato, Anna inicia pelo país um périplo que nada tem de realista, no sentido convencional do termo. Pode-se também dizer que Guédiguian procura retratar não apenas um país real, com seus problemas e encantos, mas uma terra mítica. É é justamente esse solo ancestral que predomina na cabeça dos filhos de imigrantes. Ao conhecer a Armênia, Anna estará não apenas pisando um país real, mas aquele que lhe foi transmitido pela memória de quem a criou. Trabalha-se assim com essa superposição entre real e imaginário, aspecto que dá ao filme uma dinâmica toda particular.

Guédiguian explora ainda outro aspecto que dá ao filme uma vivacidade particular: o confronto entre uma mulher de personalidade muito forte e uma sociedade machista. Na verdade, é uma duplicação do seu relacionamento com o pai, sempre complicado. Armênia será então uma múltipla jornada para a médica Anna. Terá de resolver-se em seu destino de mulher, filha e cidadã. Na incorporação dessas diferentes dimensões em uma mesma linha ficcional, é que Guédiguian se mostra melhor, pois está bem instalado em seu estilo e em sua visão de mundo. Seus personagens não são nunca apenas reflexo da sua psicologia e de seus conflitos com os outros. Estão imersos em uma determinada sociedade, seus problemas, suas fissuras e contradições. No caso: a Armênia real é um país machucado, saído dos domínios da antiga União Soviética e com o legado de um massacre em sua história.

Publicidade

O ponto geográfico desse desencontro é o Monte Ararat, parte do território da Turquia mesmo sendo o símbolo nacional da Armênia. Esse desencontro não escapa a Guédiguian, que faz dele um comentário agudo sobre a fluida identidade contemporânea. Anna não é menos armênia por ter nascido e morar na França. Mas onde está o seu centro, lá ou cá, ou talvez entre os dois países? Essa é a questão que a mobiliza.

Serviço Armênia (Le Voyage en Arménie, França/ 2006, 125 min.) - Reserva Cultural 1 - 14h20, 16h50, 19h15, 21h40 (sáb. também 23h55). Cotação: Bom

(Caderno 2, 7/12/07)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.