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Opinião|Alice e o Prefeito: essa história não aconteceria no Brasil

 

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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 Foto: Estadão

 

Desconfio que Alice jamais seria contratada por um político brasileiro. No entanto, ela se torna protagonista de Alice e o Prefeito, bom drama e comédia reflexiva de Nicolas Pariser. Paul Théraneau (Fabrice Luchini) é prefeito de Lyon, um político em ascensão que pode aspirar à presidência. Acontece que Paul sofre de um mal muito comum entre políticos - ele não consegue mais produzir qualquer ideia original. Tudo nele é clichê. Com exceção de um fato - ele se dá conta perfeitamente do seu esgotamento. Para tentar contornar o problema (ou talvez solucioná-lo), sua equipe contrata uma jovem intelectual, Alice (Anaïs Demoustier), com formação em filosofia. Sua função? Apenas esta: tirar o prefeito da sua zona de conforto. Fazê-lo pensar, o que muitas vezes pode ser incômodo, em especial para pessoas em posição de poder. 

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Imaginam isso acontecendo no Brasil? Alguém, no palácio presidencial, recomendando livros, dando pitacos críticos em discursos, apontando incoerências ou tergiversações do mandatário? Pouco provável, não é?

No limite, talvez seja improvável até mesmo na França, país com gigantesco retrospecto intelectual, mas que tem como favorita às próximas eleições a direitista Marine Le Pen. Algo aconteceu também na França. Algo aconteceu no mundo. E talvez um pequeno e, no fundo, despretensioso filme como Alice e o Prefeito nos estimule a refletir sobre como chegamos até aqui. 

Alice Heimann (é o nome da moça) não funciona apenas porque recomenda leituras corretas. Ou presenteia livros interessantes, como as Rêveries du Promeneur Solitaire, de Rousseau, ou Bartleby, de Melville. Ela é como um Grilo Falante, que opera mais pela crítica intelectual que pelo sentimento de culpa como o original de Collodi. 

Com sua presença, a garota mexe de fato com o marasmo do prefeito. A tal ponto que, quando o jogo se torna mais duro e pesado, o sistema, que tem sua própria lógica, buscará expeli-la. A inteligência crítica pode ser criativa num momento, torna-se ameaçadora em outro. É do jogo. Daí uma certa incompatibilidade (relativa) entre o intelectual e o poder. Este exige certas negociações, concessões, pragmatismo e zonas de sombra que a radicalidade intelectual exclui ou não pode se permitir, sob pena de se anular como pensamento livre. 

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Daí essa fricção. E, através dela, a relação sempre complicada entre a ideia e a ação. Como se uma negasse a outra. Ou fossem contraditórias. O homem ou mulher de ação não podem ser contemplativos. O homem ou mulher de pensamento não podem se dedicar à ação. Um rumina, outro age. 

De certa forma, Alice e o Prefeito põe em cena personagens que se negam ter ideia e ação política como termos excludentes. A linha narrativa expõe as dificuldades e mesmo os impasses dessa tentativa de conciliação ou síntese. 

Tudo isso para dizer que o filme é para lá de interessante, ao menos para quem se interessa por política como coisa de gente grande. Luchini é sempre brilhante em seu estilo minimalista e cheio de nuances e subentendidos. A jovem Anaïs Demoustier o acompanha de perto, com sua vitalidade inteligente. Um belo e estimulante filme. 

 

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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