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Cinema, cultura & afins

Opinião|Alguns pitacos sobre Ninfomaníaca 2 e Alemão, e férias

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Antes de viajar (estou em férias), deixo uns palpites sobre esses dois filmes muito interessantes e que já estão em cartaz.

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Alguns se decepcionaram com a segunda parte do filme de Lars Von Trier. Não eu. E digo por quê. Porque parece bem claro que o filme é um projeto único, dividido em dois apenas por razões comerciais de exibição. Quer dizer: Ninfomaníaca 2, a meu ver, não pode ser analisado como continuação, já que faz parte de um todo.

O aprofundamento de Von Trier no drama de Joe (Charlotte Gainsbourg) testa alguns limites do cinema comercial, isto é, exibido em salas comerciais. Flerta com o pornô, embora nunca o seja e a despeito de cenas de penetração (encenadas por dublês de corpo). O pornô serve para excitar. O cinema de risco serve para fazer pensar e sentir. Em especial, o que evitamos sentir e pensar. O dinamarquês é ousado: vai aos limites do sexo explícito, sadomasoquismo, pedofilia e outras variantes.

Esse é o tema subjacente: o sexo humano é feito de variantes. Não se trata de freudismo de esquina, como andou se falando. Está lá em Três Ensaios para uma Teoria da Sexualidade e em outros textos e livros para quem quiser conferir. Não por acaso, Seligman, o interlocutor de Joe, passa pela tese freudiana da "perversidade polimórfica" da infância. Uma panssexualidade que, depois, se "especializa" na sexualidade dita "normal". Qualquer ponto de vista libertário sobre o sexo tem de passar por essas ideias. E é por onde Von Trier orienta seu filme. O fato de produzir escândalo tem a ver com duas coisas: 1) é mais fácil discutir certas ideias com palavras que com imagens; 2) ideias polêmicas, com mais de um século de circulação cultural, ainda não foram totalmente assimiladas ao consenso médio. Continuam a incomodar.

Também achei que a narrativa tem oscilações, pontos obscuros, determinados artificialismos, etc. Mas também entendo que esses desníveis narrativos não comprometem o filme. Quanto às provocações. Se Von Trier provoca, convém lembrar que Sade fez isso antes dele, muito antes aliás, e foi conhecer o interior da prisão/asilo de Charenton por causa disso. As descrições de Sade, em Justine, por exemplo, são explícitas como as de Von Trier, ao contrário das de Sacher Masoch, que busca o erotismo sem qualquer cena sexual explícita - por falar nisso, o que terá feito Polanski de Vênus das Peles?

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Mas, assistindo a Ninfomaníaca, pensei mais em outro escritor, Georges Bataille, autor de um livro famoso no Brasil na minha época de estudante de filosofia - O Erotismo (L'Érotisme). Bataille era um pensador livre; escrevia sem notas de rodapé mentais. Usava a escrita como forma de invenção e pesquisa, e sabia que a liberdade se exerce contra um certo limite. Por isso, via no erotismo esse ato de franquear determinado tabu, uma fronteira, uma barreira moral. Me parece que essa é a trajetória de Joe, que a leva, claro, aos confins do crime, do suicídio ou da autoaniquilação.

É a sua busca do corpo próprio, assim como a de Seligman é a da inteligibilidade através dos livros. Corpo e mente, como se os dois que dialogam visassem uma complementaridade mútua que, no fundo, é negada. Talvez seja essa a função da sequência final, dispensável a meu ver, mas que deve ter sido pensada por Von Trier como fundamental para ilustrar essa disparidade intransponível entre corpo e espírito, matéria e pensamento, carne e ideia. Diga-se o que se disser: o filme é brilhante e incômodo, por mais que se antipatize com Lars von Trier, ou talvez por isso mesmo.

Alemão

 Foto: Estadão

Gosto muito do cinema de José Eduardo Belmonte e estava curioso para ver Alemão. Por vários motivos: por ser de Belmonte, por ser sobre as UPPs, por ter a infiltração policial como mote. Scorsese, é obrigatório lembrar, fez seu Os Infiltrados, título em português para The Departed, e com ele ganhou o Oscar que a Academia lhe devia. O título original já faz lembrar isso, que quem vai para esse tipo de missão é como se estivesse se despedindo da vida.

Gostei de muita coisa de Alemão, em particular do huis clos em que se transforma a pizzaria de um dos infiltrados. Me fez lembrar, por momentos, o Hawks de Onde Começa o Inferno (Rio Bravo), para mim o western dos westerns (Bem, ok, há Rastros de Ódio, No tempo das Diligências e outros...). Mas em Rio Bravo, a dimensão da espera é a que conta. E aquela infernal música mexicana, tocada o tempo todo...

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Alemão às vezes atinge esse clima. Nem sempre. Achei que existem problemas de roteiro. Não se entende muito bem o que produziram aqueles infiltrados para facilitar a invasão do complexo. Além disso, existem tiques de roteiro um tanto inverossímeis, como o motoqueiro que perde as fichas com todos os dados dos infiltrados, fotos, currículos e tudo mais. Por mais trapalhona que seja a nossa polícia, é difícil acreditar num erro dessa dimensão. (De passagem: faço parte de uma geração de críticos que, por influência do Cinema Novo, tende a minimizar a função do roteiro, depositando toda a responsabilidade do filme na mise-en- scène. Ok, mas o cuidado com a escrita, com a depuração do que se escreve, acaba sendo fundamental para o destino do filme, não há como negar).

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Então acho que faltou isso. Os atores são excelentes, Belmonte filma bem como sempre, com muita consciência da liberdade da câmera, mas as pontas soltas do texto comprometem um pouco a fruição. Não sei também se eu teria colocado cenas documentais das manifestações de junho, numa tentativa de generalização política que me parece um tanto forçada. No mais, o quadro histórico parece bem composto e funciona para lembrar que tudo o que acontece no morro faz parte de algo muito maior do que ele. Ah, a política...se você não se interessa por ela, ela se interessa por você.

Férias

Agora, sim, para valer. Amanhã saio em viagem, dou umas voltas por aí e retorno. Como viajo sempre com meu IPad, se bater alguma síndrome de abstinência de escrever pode ser que de vez em quando pinte algum post por aqui.

Mas, como dizia um amigo anarquista espanhol, sin compromisos...

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Até a volta.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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