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Cinema, cultura & afins

Opinião|Algumas palavras finais sobre o Festival de Brasília de 2014

Não é surpreendente que o longa-metragem Branco Sai. Preto Fica tenha recebido o principal prêmio do Festival. Era mesmo o favorito. Surpreendente é que os diretores dos longas tenham se reunido previamente e decidido dividir o prêmio em dinheiro (R$ 250 mil) entre todos os concorrentes, fosse qual fosse o filme vencedor. Em manifesto lido no palco do Cine Brasília, após a premiação, os cineastas criticaram a disparidade entre o valor do prêmio principal e os de outros prêmios, o que, além de injusto, induzia um indesejável clima de competitividade entre os concorrentes. Essa prova de coleguismo e de consciência política foi bonita demais e fecha de maneira marcante esta 47ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o mais antigo e politizado do País.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Em todo caso, Branco Sai. Preto Fica, que mostra o apartheid entre as cidades satélite e o Plano Piloto de Brasília, levou também os troféus de direção de arte, ator e da crítica (Prêmio Abraccine), além dos troféus da Mostra Brasília (apenas para produções do Distrito Federal) e o Saruê, oferecido pelo jornal Correio Braziliense. Ao receber o troféu, o diretor Adirley Queirós elogiou a coragem da curadoria ao escolher apenas filmes de risco para a competição e destacou o caráter político do festival, que andou sendo contestado ao longo do evento. Aliás, o presidente do júri, o cineasta Orlando Senna, ressaltou que o Festival de Brasília nunca foi tão político como agora, afirmação a ser relativizada.

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Brasil S/A, de Marcelo Pedroso, metáfora poderosa do ensandecido modelo de desenvolvimento do capitalismo à brasileira, recebeu o maior número de troféus do júri oficial: direção, roteiro, trilha sonora, som e montagem. É uma forte alegoria do Brasil contemporâneo, talvez o mais inventivo dos concorrentes do festival. Em off, um dos jurados confidenciou que cogitou-se dividir o prêmio principal entre Brasil S/A e Branco Sai. Preto Fica. Mas foram impedidos pelo regulamento e desse modo o júri optou pelo concorrente do Distrito Federal.

Ventos de Agosto e Ela Volta na Quinta receberam dois troféus cada e o experimental Pingo D'Água foi o único a ser ignorado pelos jurados. O único, não: o excelente documentário Sem Pena, de Eugênio Puppo (SP) também sairia de mãos abanando não fosse salvo pelo gongo com o Prêmio do Júri Popular. O público, nesse caso, preencheu uma lacuna do júri oficial, que não viu importância nesse trabalho que desfaz mitos a respeito dos sistemas judiciário e penal no País.

Ressalvas à parte, foi uma premiação bastante aceitável para uma mostra que optou por uma vertente bastante particular do atual cinema nacional. Os concorrentes em longa-metragem foram escolhidos do nicho mais experimental do cinema brasileiro e diretor mais consagrado não teve vez nesta edição de Brasília. Os seis concorrentes foram escolhidos entre mais de uma centena de pretendentes e não se divulgam os preteridos. No entanto, fiquei sabendo que diretores como Tata Amaral, Murilo Salles e Walter Carvalho não passaram pelo crivo da comissão de seleção. Esta, além concentrar os concorrentes numa única tendência, e transformar Brasília em sucursal da Mostra de Tiradentes, especializada em cinema experimental, ignorou por completo o critério de ineditismo. Para se ter ideia, o vencedor Branco Sai. Preto Fica, antes de chegar a Brasília, já havia passado por Tiradentes, onde ganhou menção honrosa, pelo Olhar de Cinema de Curitiba, no qual recebeu um Prêmio Especial do Júri e foi eleito o melhor filme brasileiro na mostra Outros Olhares, e ainda faturou os troféus de roteiro e contribuição artística de som no recém-encerrado Festival de Vitória. Uma carreira e tanto. Mas houve tempo em que Brasília dava preferência aos inéditos.

Enfim, são opções de curadoria e da comissão de seleção, pois o ineditismo não é obrigatório, apenas preferencial. Além disso, nada proíbe, a não ser talvez o bom senso, concentrar-se numa vertente única e ignorar a diversidade do cinema brasileiro de autor. Essa opção fechada criou um sentimento de euforia entre diretores jovens e parte da crítica. Mas havia muitos descontentes em Brasília que se manifestavam em off, preocupados com os efeitos de linha curatorial tão segmentada no futuro do festival. Infelizmente, essa polêmica potencial não se explicitou e foi também ignorada pela imprensa local, que preferiu aderir à torrente de elogios dominante.

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No fim, tudo acabou em festa, porque um filme do Distrito Federal não vencia seu festival desde 1994, quando Loucos por Cinema, de André Luiz de Oliveira, faturou o Candango principal. Além do mais, o belo gesto dos diretores de longas, de partilhar o prêmio em dinheiro, encobriu e aplainou qualquer aresta mais séria que pudesse arranhar o brilho do festival. Este começou e fechou com dois clássicos absolutos do Cinema Novo, este sim o movimento mais político do cinema nacional - Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, ambos em cópias restauradas. Brasília 2014 teve outras exibições históricas, como as de Iracema, uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, e Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, além de seminários discutindo o cinema e os 50 anos do golpe de 1964, a presença da crítica na internet, os bastidores de filmagem de Cabra Marcado para Morrer e outros.

Foi uma semana ativa, intensa e às vezes sufocante. Valeu a pena.

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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