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Opinião|A voz do dono

Documentários como Democracia em Vertigem, No Intenso Agora e Imagens do Estado Novo têm sido narrados por seus próprios autores

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
 Foto: Estadão

Há muito saiu de moda a narração em off (ou over) nos documentários ditos "sociológicos". Em nossos tempos, essa voz impessoal, que dizia a "verdade" dos fatos, tornou-se insuportavelmente autoritária. No entanto, ela está presente em filmes notáveis, como Viramundo, de Geraldo Sarno. 

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Para nossa época, parece muito mais palatável a voz em primeira pessoa. Ainda - e principalmente - que seja a do autor do filme. Os exemplos se multiplicam, mas apenas para lembrar de alguns títulos recentes, Imagens do Estado Novo, é narrado pelo diretor Eduardo Escorel, No Intenso Agora por João Moreira Salles e Democracia em Vertigem por Petra Costa

Sobre esta última vem recaindo uma certa implicância. A voz seria ora monótona, ora mentirosa (a história da militância dos pais teria sido inventada). 

Bom, ninguém é obrigado a gostar da voz de ninguém, mas muitas críticas me parecem trazer mais a marca da inapetência por temas políticos - e por este tema político em particular - que de objeções estéticas ou mesmo de simpatia pessoal. Além da voz, repisa-se sobre o filme velhos preconceitos a respeito do cinema político, disfarçados em exigências estéticas. Claro, mano, o tema nada define de um filme; interessa checar a forma com que esse tema é afrontado. Esse é o bê-a-bá, a cozinha da crítica e nem vale a pena ser discutido. Não precisa ter lido Cahiers para sabê-lo. 

Mas, voltemos ao "lugar de fala" dos cineastas.  

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Em Imagens do Estado Novo, um estudo fenomenal sobre a imagética de um dos períodos definidores da história brasileira, a voz de Escorel assume a persona do estudioso capaz de decodificar a semiologia das imagens oficiais e dar-lhes sentido histórico. 

No intenso Agora molda-se no comentário de João das imagens amadoras feitas por sua mãe em uma viagem à China comunista. A partir daí, indaga pela felicidade e por que ela se perde, infiltrando-se nas imagens cheias de energia do maio de 68 francês, nas imagens do luto da invasão de Praga e nas imagens da morte do estudante Edson Luis Souto, no Brasil da ditadura militar. A voz expressa também um ponto de vista pessoal, meditando, a partir das imagens, sobre os picos da paixão (política inclusive) e a impossibilidade de mantê-los para sempre. 

A voz de Petra em Democracia em Vertigem me parece marcada pela perplexidade diante do que mostram as imagens - as manifestações de 2013, o impeachment de Dilma, a prisão de Lula, a eleição de Bolsonaro. Não conheço ninguém, de sensibilidade média para cima, que não esteja perplexo diante da eleição de um político de tal quilate para a presidência da república e de tudo que isso significa para esta democracia tão frágil. De modo que, na minha visão, essa voz hesitante, frágil, pouco assertiva, me parece estranhamente adequada para narrar as imagens deste momento histórico. Voz e imagens fazem um todo - o filme - e é com ele que temos a ver. 

Alguma amiga de Facebook (perdão, já não lembro quem foi) escreveu algo nesse sentido quando o filme foi lançado. A voz de Petra expressaria a dúvida e as hesitações de quem busca algum sentido possível neste caos chamado Brasil. É uma voz que não "lacra" - para usar esse verbo idiota, tão em voga. 

A voz tateia, murcha, ensaia algumas interpretações, mas é muito pouco assertiva, pouco segura de si, justamente porque sabe que a neblina da história ainda não se dissipou. E o documentário seria apenas uma tentativa de fazer-nos ver um pouquinho mais através dessa névoa, por meio da reiteração de imagens, muitas das quais já conhecidas. A impressão que nos causa é de luto e dúvidas, e isso, creio eu, nos impele a pensar sobre como chegamos ao ponto onde estamos e qual a parte que nos cabe nesse latifúndio.

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A posição do luto não anula a do guerreiro e não implica em passividade. O luto - dizia aquele velhote de Viena chegado a charutos - é um trabalho a ser feito. A voz de Petra é a voz do luto. E, com o luto, vem a luta.  

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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