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Opinião|A política dos corpos em 'Tatuagem'

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Não se iluda - Tatuagem, de Hilton Lacerda, não é apenas um filme sobre a cena gay do Recife nos anos 1970. É um filme sobre a liberdade. Entendendo-se sempre, que a liberdade é, antes de tudo, a liberdade dos outros, de quem discorda de nós.

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Era o que não havia em 1978, ano em que a ditadura militar, já com sintomas evidentes de perda muscular, de vez em quando fazia questão de exibir sua força remanescente através de atos de truculência.

Nesse momento de transição da história brasileira surge o amor entre Clécio (Irandhir Santos) e Fininha (Jesuíta Barbosa). Clécio, líder de uma trupe teatral cujos integrantes vivem numa comunidade típica do desbunde dos anos 70; Fininha, soldado raso, servindo ao Exército num batalhão da capital pernambucana.

A paixão entre o dramaturgo e o reco parece estratégica para mostrar o tipo de contestação possível num momento em que a luta contra a ditadura já fora vencida e a oposição havia feito a passagem da crítica das armas para a crítica dos corpos. Uma política do corpo, como falava o filósofo Michel Foucault, para quem se a repressão se instalava no sexo, o exercício sexual podia ser uma via de liberação.

Sobre esse fundo de apologia libertária, se traçam as linhas mais expostas de Tatuagem e que se passam, na maior parte, no interior do cabaré Chão de Estrelas, onde se gesta a montagem de um novo espetáculo. Que, claro, enfrentará problemas com a censura, pois fala do corpo, o expõe, e trata com deboche de alguns temas tabus, como  a tradição, a família e a propriedade.

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No interior desse cabaré, os artistas se exibem para a plateia cúmplice. Era mesmo assim na época da ditadura. Pregava-se para já convertidos. O sentido do show não era angariar adeptos mas apenas afirmar que estávamos vivos. Nesse palco um tanto mambembe do Chão de Estrelas encenam-se quadros que vão do sublime ao grotesco. Deles, Lacerda, diretor estreante e roteirista experiente, extrai o máximo. Uma beleza de imagens às vezes felliniana, mas também um grande apego ao material que, mais sintético, talvez fosse mais certeiro.

Nesse cabaré, mistura de sonho e realidade, sobressaem os atores. Irandhir, claro, intenso como Clécio, figura da voz da razão mas que também não pode censurar o sonho, pois sabe que esta é sua matéria prima. Jesuíta Barbosa, na interpretação cool escolhida para o soldado Fininha e que tem lhe rendido prêmios e admiração. Paulette, de Rodrigo Garcia, figura luminosa e que rouba as cenas das quais participa. Um talento e tanto, o deste rapaz.

Tatuagem expressa a preocupação de parte do cinema do Recife com a contracultura e sua política da sexualidade. De certa forma, o filme de Hilton Lacerda é derivado do anterior Febre do Rato, de Cláudio Assis, roteirizado pelo próprio Hilton. O poeta heterossexual Zizo, de Febre do Rato, e o dramaturgo homossexual Clécio, de Tatuagem, ambos vividos por Irandhir Santos, são espelhos, um do outro. Além do mais, em Tatuagem, Clécio é pai de um menino, fruto de um relacionamento heterossexual.

Esse díptico, se assim considerarmos os dois filmes em conjunto, faz uma ode à política dos corpos. Lá onde a política convencional falha, ou é insuficiente, o corpo faz a política por outros meios. Daí as cenas explícitas não serem colocadas para chocar o público. São consequência de uma visão política que coloca na liberação do sexo uma função de transformação. É nesse ponto que os filmes encontram seu maior alcance, mas também sua limitação mais evidente.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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