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Cinema, cultura & afins

Opinião|A lanterna mágica de Bergman

O livro é circular. Começa e termina com a narrativa do nascimento do autor. O resto é de difícil definição. Lanterna Mágica, de Ingmar Bergman, agora relançado, em nova tradução e prefácio de Woody Allen, pela Cosac Naify, é um objeto raro no universo das memórias de um cineasta. Nem é o relato bem-humorado de uma vida satisfeita consigo mesma, como Meu Último Suspiro, de Luis Buñuel, nem testemunho concentrado de uma concepção de obra, como Esculpir o Tempo, de Andrei Tarkovski. Em certo sentido, lembra um pouco Memórias Imorais, de Sergei Eisenstein, mas apenas em seu caráter fragmentário.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Na verdade, a estrutura do livro de Bergman é ainda outra. Ele não respeita a cronologia; avança num capítulo para recuar no seguinte. Fala muito na infância e nos pais - nem sempre, ou quase nunca, de modo carinhoso. Lembra muito de sua carreira no teatro, provavelmente mais do que no cinema - que, no entanto, o tornou mundialmente conhecido, porque o cinema viaja e o teatro, não. O cinema fica impresso em celuloide (e agora em sinais digitais) e pode ser reproduzido à vontade. O teatro é o momento e a memória de quem o viveu. E as memórias de teatro de Bergman são profundas, duradouras e, como não poderia deixar de ser, conflitantes.

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O livro recusa algumas expectativas aos fãs. Por exemplo, esperamos, num trabalho memorialístico, um esforço de distanciamento crítico sobre a própria obra. Uma revisita ao trabalho, já num ponto de maturidade como o dos seus 68 anos de idade (Bergman nasceu na cidade de Uppsala, na Suécia, em 1918, morreu em sua casa na Ilha de Farö em 2007, e o livro é de 1986). Há isso, entretanto de maneira, diríamos assim, assistemática. Fala de alguns filmes, porém não de todos. E não fala de alguns dos seus trabalhos mais conhecidos. Por outro lado, não se pode dizer que esta recusa seja uma frustração. Sabemos já demais de suas obras-primas. Este livro ilumina desvãos deixados na sombra.

Fala também de suas mulheres, que, como é do conhecimento geral, foram muitas e famosas. Mas também não o faz da maneira como esperamos. Claro, ele fala de Harriet Andersson, de Bibi Andersson e de Liv Ullmann. Mas dá mais espaço - e intensidade - a outra, a jornalista Gun Hagberg, com quem teve uma ligação tumultuada, intensa, e fracassada, como as outras. Gun era casada e Ingmar, também. Ambos tinham filhos em seus respectivos casamentos. Conheceram-se quando a revista em que a moça trabalhava, a Filmjournalen, visitou o set de filmagem de Bergman.

Paixão instantânea, o casal foge para Paris e vive uma história de amor de contos de fada durante algum tempo. Mas era preciso resolver a vida. Bergman volta para a esposa, Ellen, e lhe diz, de modo brutal, o que está acontecendo. Intersecção da vida real e da arte: "Quem estiver interessado (no episódio) pode seguir o desenlace da terceira parte de Cenas de Um Casamento", escreve ele. A relação foi conflitada. Alugaram um apartamento, para o qual Gun se mudou com seus dois filhos. Como Bergman, àquela altura com 30 anos, já tinha dois casamentos desfeitos, ambos com filhos, passou a ter três famílias para sustentar. Para completar, Gun engravidou, Bergman perdeu o emprego na Svenk Filmindustri e também foi despedido do cargo de diretor artístico do teatro de Lorens Marmstedt, seu produtor desde o início da carreira. O casamento com Gun já estava um tanto trincado quando Bergman começou a filmar Monica e o Desejo e conhece Harriet Andersson. Contudo, admite, Gun foi modelo para muitas personagens de seus filmes - em Quando as Mulheres Esperam, Noites de Circo, Uma Lição de Amor, Sonhos de Mulheres e Sorrisos de Uma Noite de Amor.

Crises. Vamos percorrendo o livro e encontrando um Bergman verdadeiro homme à femmes, jamais um vulgar Don Juan. Ele mesmo se diz atormentado por uma sexualidade tenaz e exigente. Criado na repressão dos sentimentos pelos pais, o reverendo Erik Bergman e a mãe, Karin, Ingmar é um atormentado, entre a sexualidade e a repressão. Quanto mais intensa uma, mais forte a outra. Para fortuna de todos nós, essa dialética sinistra entre o desejo e a culpa esparrama-se generosamente para os filmes e peças. Uma vida tão intensa como sofrida fornece material nobre para a obra.

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Não pense que apenas as mulheres causaram sofrimento a Bergman (sincero, ele concede que deve ter causado a elas mais sofrimento ainda). Um capítulo inteiro é reservado aos problemas com o fisco sueco e o colapso mental que o processo produziu no cineasta. Bergman havia entregado seus negócios a um contador. Não queria e não sabia se ocupar de dinheiro. Como tanta gente criativa, assinou contratos sem compreender o que estava escrito e mesmo sem ler. Um dia, levaram-no do teatro à delegacia e iniciaram um processo judicial. Bergman teve uma crise psíquica e foi internado. Vivia à custa de doses cavalares de sedativos. Quando melhorou, exilou-se na Alemanha. Trabalhou nove anos em Munique, onde obteve sucesso e problemas, mas, mesmo fluente em alemão, queixava-se da falta do idioma materno. Sentia falta da casa.

Dono de uma formação cultural sólida, ferozmente autodidata, Bergman não concede o espaço esperado, por quem conhece seus filmes, à psicanálise. No entanto, como numa psicanálise selvagem, é na infância que prospecta seus mitos pessoais. Não apenas na maneira como vê e sente seus pais, modelo para os futuros relacionamentos, mas na própria paixão pelo cinema. Num Natal, ele conta, uma tia rica dá ao seu irmão o presente que ele próprio esperava receber - um cinematógrafo. A lanterna mágica, que encerra o mistério das imagens em movimento. O garoto Ingmar, depois de passar a noite chorando, não tem dúvida. Negocia com o irmão mais velho a sua coleção inteira de soldadinhos de chumbo e consegue apossar-se da máquina maravilhosa. Projeta as figuras na parede e observa como, ao girar a manivela, elas ganham vida. Décadas depois, solitário em sua sala de cinema privativa na casa da Ilha de Farö, constata: "O projetor zumbe fracamente na sala de máquinas bem isolada. As sombras se movimentam, voltam seus rostos para mim, querem que fique atento ao seu destino. Sessenta anos se passaram, mas a excitação é a mesma". Tudo declina. A saúde, a disposição para o sexo, as mulheres que passam, os filhos que não o visitam, a glória; o amor pelo cinema, despertado na infância, esse continua.

Assim como permanece um desejo bastante consciente, talvez, de acertar contas com um passado difícil. Há um sentimento ambíguo em relação aos pais que acompanha a obra de Bergman de um ponto a outro. No rigor ascético da conduta, um perfeccionismo implacável, que não se permite as facilidades do improviso. Mas também na necessidade de falar do amor de uma maneira depurada, igualmente intensa e rigorosa, sem cair jamais no sentimentalismo. Dar ao amor seu justo lugar na economia mental e física da espécie. Sem endeusá-lo nem diminuí-lo.

Álbum de família. Talvez por esse motivo, as passagens finais do livro sejam as mais literariamente elaboradas. Bergman fala da mãe, morta, como se ainda estivesse viva; lembra um pouco o episódio final de Kaos, o maravilhoso filme que os irmãos Taviani tiraram dos contos de Pirandello. Esse episódio não está na literatura do siciliano - foi inventado pelos cineastas, que reencenam o encontro fantasmagórico do escritor com sua mãe havia muito desaparecida.

Bergman se lembra do pai, o rígido reverendo Erik, e da figura da mãe. Quando o pai morre, ele "rouba" todos os álbuns de fotos da família. Pesquisa obsessivamente esses antigos registros e monta um comovente curta-metragem chamado O Rosto de Karin (encontrável no YouTube). São imagens da face da mãe, de registros da infância à última fotografia, tirada para um passaporte que ela não chegou a usar. É também uma história da família, e dele próprio, através do testemunho mudo das antigas fotografias. Imagens do álbum, impregnadas desse mistério, "a estranha ideia de família/ viajando através da carne", nas palavras de Drummond (Retrato de Família, in A Rosa do Povo).

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Vai além. Mantém um "diálogo" imaginário com Karin, num domingo em que ele visita a velha casa da infância após ouvir na igreja um oratório de Bach. Fala sobre o diário, encontrado após a morte da mãe e, no qual, com sua caligrafia minúscula, ela registra o nascimento de um bebê doente, fraquinho, aparentemente destinado a não vingar: "Nosso filho nasceu domingo pela manhã. Imediatamente teve febre alta e forte diarreia. Ele parece um pequeno feixe de ossos com um grande nariz vermelho. Recusa-se a abrir os olhos. Depois de alguns dias não tive mais leite por causa da doença. Então ele foi batizado às pressas no hospital. Chama-se Ernst Ingmar". E o círculo se fecha.

É fascinante. Bergman não mostra qualquer desejo de enfeitar a sua história. Ela é feita da mesma beleza dura dos seus filmes.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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