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Opinião|A comédia do poder

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
Macbeth, de Roman Polanski: os crimes do poder Foto: Estadão

 

Acho que todos nós estamos aturdidos com o espetáculo grotesco dos últimos tempos. Não há lobo faminto que se lance à presa com a voracidade com a qual políticos se atiram ao poder. É uma paixão, queiramos ou não.

Existe um provérbio napolitano, que cito em dialeto, pelo sabor: "'O cummanna' è meglio d' 'o fottere".

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Traduzido de maneira livre, bruta: "Mandar é melhor que foder". Italianos de outras regiões falam "Comandare è tre volte meglio di scopare". Três vezes melhor!

A graça, um tanto vulgar, concordo, é certeira em sua franqueza desabrida. Fala da sensualidade do poder.

E sugere, no nível pulsional, o motivo pelo qual as pessoas se atiram à conquista do poder como feras insaciáveis.

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Antes de condenar os políticos ao mais profundo círculo do inferno, convém examinarmos em nós mesmos essa pulsão.

Quem de nós já experimentou, mesmo que uma ínfima parcela de poder, e não sentiu uma estranha sensação de gozo?

Qualquer poderzinho serve. Pode ser o do presidente de uma associação de bairro, uma chefia de seção, a diretoria de um hospital. O poder está em toda parte. Está numa sala de aula, numa repartição pública, num hospital, na redação de um jornal, numa quadrilha de malfeitores. E sempre é cobiçado, pois significa a possibilidade de impor seus desejos aos outros.

O que dizer então do poder político, o grande poder, o poder para valer? Ser prefeito de uma grande cidade, governador de um Estado, presidente de uma nação. É o suprassumo do poder. O ápice de sua sensualidade.

O poder provoca essa descarga de libido. Essa febre. Daí os desatinos a que pode conduzir, porque se assemelha, em muito, a uma forma de loucura.

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Tanto assim que, desde a antiguidade até hoje, a humanidade, sob a forma da arte, se ocupa do poder e dos seus desvios. Édipo e Antígona falam do poder, de sua busca, e seus desmandos e consequências. O maior de todos os dramaturgos, Shakespeare, não deixa de falar do poder quase o tempo todo. Hamlet e Macbeth evocam os crimes do poder. Rei Lear fala da problemática divisão do poder, quando é chegada a hora de passá-lo a outros.

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Infindáveis são os filmes que tratam do poder. A começar pelo maior deles todos, Cidadão Kane, que não passa de um pungente estudo sobre a busca do poder e a solidão final de quem se entrega a ele. Terra em Transe é, entre outras coisas, um estudo sobre a tragédia política brasileira, num contexto de luta desenfreada pelo poder, como foi o golpe de 1964, matriz histórica da reflexão de Glauber em sua república imaginária.

Poderia ficar aqui citando indefinidamente. E até mesmo lembrar que não existe política sem essa luta pelo poder. Também é forçoso reconhecer que pode haver um lado benigno, quando se conquista o poder para, com ele, fazer coisas boas pela comunidade. Por isso, um pensador tão realista como Maquiavel, ao teorizar sobre a conquista emanutenção do poder, levava em conta a população. De um déspota, dizia que havia conquistado o poder, mas não a glória. São coisas diferentes. Há quem não hesite em desalojar um grupo do poder, por pura ambição, mesmo que seja à custa da destruição de um Estado. Podemos dizer que isso é legítimo?

De modo que a luta desenfreada pelo poder pode tanto destruir o sujeito que o conquista quanto o Estado pelo qual essa luta se trava. No caso, a vaidade, a droga pesada do poder, se sobrepõe ao interesse coletivo.

Gosto de um filme mais modesto, mas muito bonito, chamado entre nós de A Comédia do Poder, de Claude Chabrol. No original, L'Ivresse du Pouvoir, a embriaguez do poder. Nele, Isabelle Huppert faz a juíza obstinada em decifrar um caso de corrupção na alta esfera e tenta colocar a todos na cadeia. Aos poucos, percebe que não passa de um joguete em mãos mais poderosas ainda e que está atirando no lixo a própria vida num combate vão. Perto do final, resolve mandar tudo às favas e cuidar de si: "Qu'ils se démerdent!", diz. Que se danem.

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É mais ou menos o que temos vontade de dizer no Brasil de hoje: eles que se danem, para não falar pior. Acontece que não vivemos fora do mundo da política. E o que eles fazem, ou deixam de fazer, nos afeta de maneira direta.

Não temos o direito de lavar as mãos e fingir que não é com a gente.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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