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Opinião|A caverna dos sonhos esquecidos

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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A caverna de Chauvet Pont D'Arc, no sudoeste da França, abriga um tesouro literalmente inestimável. Em seu interior, foram descobertos cerca de 400 desenhos e pinturas pré-históricas, datadas de 30 mil anos atrás. Descoberta por acaso, em 1994, Chauvet foi imediatamente vedada para que as pinturas não se deteriorassem. Apenas pesquisadores de alto nível têm acesso ao seu interior. Abriu-se uma única exceção para que o cineasta alemão Werner Herzog e sua equipe registrassem essas imagens com suas câmeras e as exibissem ao mundo. Não existe plano de visitas turísticas à caverna. Ver o filme - A Caverna dos Sonhos Esquecidos - é a única maneira de conhecer essas imagens, testemunhas mudas da aurora da espécie humana tal qual a conhecemos.

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"O que mais impressiona à primeira vista é a qualidade dessas pinturas", diz Herzog. "Elas não são apenas arte primitiva, são grande arte", afirma o diretor. De fato, algumas delas impressionam pela sofisticação e riqueza de detalhes. Imagens de cavalos e de outros animais parecem pintadas por algum artista contemporâneo, e não por anônimos ancestrais de milhares de anos atrás. É algo que dá o que pensar.

Consciente da oportunidade única que se abria para ele, Herzog decidiu filmar em 3D, técnica que não havia experimentado até então e da qual não sentira qualquer necessidade em outros projetos. "No entanto, logo percebi que seria fundamental dar ao espectador o sentido da profundidade de campo que se experimenta no interior da caverna e no contato com as pinturas", diz.

Opção certeira. Exibido em 3D, Caverna dos Sonhos Esquecidos é um dos raros filmes que de fato justificam o uso dessa técnica. Introduzem o espectador ao mundo interno desse mistério, em imagens a princípio um tanto claustrofóbicas. Depois o espaço se abre e começam a aparecer as pinturas, inscritas nas paredes. É uma primeira sensação deslumbrante e que depende muito do 3D para se concretizar. Tudo é muito visual e Herzog, com sua narração característica em inglês, fornece poucas, porém certeiras informações. Por exemplo, a de que a entrada da caverna de Chauvet foi fechada durante um terremoto e o acidente pré-histórico transformou-a numa espécie de cápsula do tempo. Um universo fechado em si, uma espécie de mensagem para o futuro.

E é dessa maneira que Herzog irá se aproximar do que vemos. Como se nos levasse a atravessar o umbral de uma outra dimensão temporal, que nos leva diretamente aos primórdios da espécie. O que sonhariam aqueles seres, nossos ancestrais? Qual o motivo dessa trabalhosa representação de imagens? Teriam algum fundo religioso ou não? Fariam parte de algum ritual? Como aprenderam a pintar desse jeito? Não sabemos. Os cientistas não sabem e tudo o que podem fazer é especular.

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As imagens, no entanto, falam por si. Causam a impressão de estarmos diante de uma maravilha, estranha e misteriosa. Algumas delas, como a já citada sequência de cavalos superpostos, são de alta qualidade técnica. Diríamos desenhadas hoje, ou há pouco tempo, mas as datações de Carbono 14 afirmam que foram feitas 30 mil anos atrás. Há animais em profusão desenhados nas paredes da caverna, mamutes, bisões, leões, tigres. Se olharmos atentamente, algumas parecem pouco realistas. Alguns animais parecem ter patas a mais. Por quê? Deficiência do artista? Herzog tem outra interpretação: "Algumas dessas imagens foram feitas para simular movimento, daí a impressão de alguns animais terem patas em excesso. Elas são como uma antevisão do que seria o cinema, uma espécie de protocinema", diz.

Um dos cientistas ouvidos (há algumas poucas entrevistas, raras e esclarecedoras) diz que foram feitos estudos estilísticos dos desenhos. "Alguns deles, podemos afirmar com quase absoluta certeza, foram feitos por uma pessoa só, um artista que se ocupava disso na comunidade", diz o estudioso. Mas existe também a possibilidade de que as técnicas de pintura e desenho pudessem ser passadas de uma geração a outra por meio do aprendizado. Desse modo, uma geração mais jovem poderia continuar o que outra havia começado, aprendendo suas técnicas e imitando-lhe o estilo. Cada hipótese abre caminho para novas explicações e novas dúvidas. Falar em aprendizado implica supor já alguma forma de linguagem e comunicação. Elas já existiriam? Tudo é possível, e não existem certezas, apenas teorias e incertezas sobre o mistério depositado em Chauvet.

Não haveria outro cineasta tão indicado quanto Herzog para nos guiar nessa vertiginosa viagem a Chauvet. Ele gosta de estudar os extremos e as obsessões, como fez em Fitzcarraldo e Aguirre, a Cólera dos Deuses. Ou, mais recentemente, sondando o lado mais obscuro da mente humana ao entrevistar condenados à morte em Into the Abyss e Death Row. Agora, com A Caverna dos Sonhos Esquecidos nos leva à maravilha e ao centro do mistério humano. Nos leva ao encontro com nosso passado.

Numa viagem que não poupa o sentido quase metafísico e litúrgico (inclusive pelo uso de uma trilha sonora perturbadora), Herzog nos conduz a indagações maiores sobre nossa condição mesma de humanos. Porque a visita a Chauvet produz tanto o efeito estético, pela beleza das pinturas, como o espanto metafísico. Um desafio intelectual, semelhante àquele que experimentamos ao contemplar o universo. Perguntamos sobre a nossa espécie, sua origem e sua posição no cosmo e na escala zoológica. Esse tipo de pergunta fundamental, e vertiginosa, que não ousamos nos fazer na embrutecida vida cotidiana.

 

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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