Aliás, Joanides escreveu um livro exatamente com este nome - Boca do Lixo - e que fez muito sucesso. Era um raro dublê de bandido e intelectual e, quem leu o livro, escrito na cadeia, percebe de cara que ele sabia se expressar muito bem. Era rápido no gatilho no trato com as palavras. Foi o que seduziu o diretor Flávio Frederico que, no entanto, abreviou o título para Boca, simplesmente.
O filme é estruturado como um longo flash back. Nas primeiras cenas, vemos Hirohito (Daniel de Oliveira) dentro de um carro, num terreno baldio, em companhia de um motorista e de uma moça. Perseguido pela polícia, ele não podia parar em lugar nenhum, do contrário seria localizado. Tinha de ficar rodando loucamente pela cidade, quase sem dormir, para não ser apanhado. O trio mantinha-se acordado na base do Pervetin, um estimulante, na veia. Há um traço alucinógeno nessa parte do livro, cujo clima é, em parte, reproduzido no filme. A partir dessas cenas, Hirohito vai reconstituindo sua trajetória, da infância à juventude. Da ascensão como Rei da Boca ao declínio e à prisão.
O filme tem clima, uma direção de arte interessante, reproduzindo a São Paulo noturna dos anos 50. Como esta não existe mais, Frederico filmou em parte no centro de Santos. Daniel de Oliveira é impressionante, como sempre. Com os óculos de fundo de garrafa e um ar de fanática determinação, reproduz bem a imagem desse bandoleiro de exceção, que lia Baudelaire nas salas de espera dos bordéis mais mixurucas do centro paulistano. O resto do elenco também é muito bom, com Millen Cortaz no papel de amigo de infância e sócio de Hirohito, Hermila Guedes como Alaíde, sua esposa oficial, Paulo César Pereio como o delegado corrupto e Leandra Leal como a amante em suas aventuras finais.