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Cinema, cultura & afins

Opinião|A arte da crítica (4). O parricídio

Cada movimento de ruptura tem a necessidade de "matar o pai" e aliar-se a um antepassado mais sábio. E o que a crítica tem a ver com isso?

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Atualização:

Cena do filme Os Irmãos Karamazóv Foto: Estadão

Leio em Nos Ombros dos Gigantes (Ed. Record), de Umberto Eco, ensaio sobre a necessidade de os filhos "matarem" os pais. No sentido simbólico, claro. Tema psicanalítico por certo, porém bastante comum na história das ideias, das quais cinema e crítica fazem parte.

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Evocando casos desde a Antiguidade, Eco vê uma constante digna de nota, que gostaria de sublinhar:

"Em todos os casos que citei, fica claro, contudo que todo ato de inovação e contestação dos pais acaba recorrendo sempre a um antepassado, que serve de referência e é reconhecido como melhor que o pai que se tenta matar. Os poetae novi contestavam a tradição latina referindo-se aos líricos gregos; os poetas hespéricos e Virgílio Gramático criavam seus híbridos linguísticos tomando emprestados étimos celtas, visigodos, helênicos e hebraicos...Dante precisou de um antepassado tão forte quanto Virgílio...e a Lógica Modernorum era moderna graças à descoberta do Aristóteles perdido" (p. 20).

Ao ler estas linhas, lembrei de dois casos clássicos em momentos de ruptura da história do cinema.

Ao lançarem a nouvelle vague, os "jovens turcos" (Truffaut & Cia) quiseram enterrar o cinema francês de "qualité" (veja em A arte da crítica 3). Porém, preservavam Jean Renoir como a figura do passado a ser retida como referência. Nas palavras de Eco, Renoir era o antepassado mais sábio do que o pai que se queria matar.

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No Brasil, o Cinema Novo, Glauber Rocha em particular, ataca o cinema europeizado da Vera Cruz (o "cinema de qualité" brasileiro), e elege Humberto Mauro como a figura do passado que se deve cultuar. Mauro é o antepassado mais sábio que o pai que se deseja matar.

Mais adiante, no mesmo texto, Eco retoma o fio da meada: "O elogio dos antiquíssimos é o gesto por meio do qual os inovadores vão buscar em uma tradição que os pais esqueceram as razões para sua própria inovação".

Em O Cinema Brasileiro Moderno, Ismail Xavier destaca a posição de Glauber Rocha que, avant la lettre, entra em sintonia com a de Eco:

"Em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, livro publicado em 1963, Glauber Rocha faz uma avaliação do passado para legitimar o Cinema Novo no presente, esclarecer seus princípios. Como acontece com os líderes de rupturas, ele age como um inventor de tradições. O novo movimento teria seus antecedentes, responde a uma história. Há Humberto Mauro, à distância, com seu cinema de poucos recursos feito em Cataguases nos anos 20; há Nelson Pereira dos Santos, que inicia, nos anos 50, o cinema moderno no Brasil a partir do diálogo com o neorrealismo italiano e com escritores brasileiros. Ao lado de tais experiências positivas, há a falência da Vera Cruz em meados dos anos 50, sinal do esgotamento das tentativas industriais. Há mitos a destronar, batalhas a travar em defesa do 'cinema de autor' que Glauber qualifica de revolucionário, contra o dos 'artesãos', funcionários do comércio. O texto é de combate e deve abrir caminho entre os contemporâneos a machadadas, discriminar" (p. 9).

São embates culturais sangrentos, escaramuças fortes no plano das ideias, num momento em que filmes se contrapõem a filmes e textos se batem com textos de forma impiedosa. A história das ideias é uma história de conflitos, não a de gerações que se sucedem pacificamente umas às outras.

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Um crítico poderia ignorar todo esse rumor em torno dos filmes, como se estes falassem por si sós, fossem mônadas isoladas de todo o tumulto que se desenvolve ao seu redor e por sua causa?

Questão complexa. Mas a resposta me parece (provisoriamente) negativa. Voltaremos.

(work in progress. a continuar)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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