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Cinema, cultura & afins

Opinião|A arte da crítica (29): A fábula fala de ti

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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Há questões que parecem óbvias, ou até escandalosas de tão óbvias. Mas podem dar em indagações filosóficas. Por exemplo: por que existe alguma coisa, a que chamamos Cosmo, em vez do nada?

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De vez em quando me pego matutando algumas dessas questões óbvias. Uma delas: mas, afinal, de que serve a arte, o cinema no nosso caso?

Tal tipo de pergunta não tem resposta. Ou melhor, cada um de nós tem a sua. Mas isso é questão de opinião, a forma mais baixa, segundo os gregos, de formular uma sentença a respeito de qualquer coisa - a doxa. Vale a pena analisar. 

Vamos descartar algumas coisas também óbvias. O cinema, claro, é uma indústria. Uma ocupação para muita gente. Um modo de vida. Mas devemos ir além. De que me serve ver um filme?

Também não há uma resposta unívoca. Pode me divertir. Encher o vazio de duas horas de tédio. Emocionar. Ensinar. Enriquecer os produtores, sustentar os atores, os técnicos, todos os que se envolveram no "projeto". Certo, é uma cadeia de negócios. Mas é só isso?

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Às vezes o acaso joga a nosso favor. 

Numa tarde vadia, encontrei por acaso no computador um texto incompleto. Começava por uma citação: 

"Uma concepção estreita da literatura, que a desliga do mundo no qual ela vive, impôs-se no ensino, na crítica e mesmo em muitos escritores. O leitor, por sua vez, procura nos livros o que possa dar sentido à existência. E é ele quem tem razão." 

A frase vem de um pequeno livro chamado A Literatura em Perigo, de Tzvetan Todorov. Um búlgaro radicado na França e que ficou famoso no meio acadêmico internacional, brasileiro inclusive, como um dos manda-chuvas da análise estrutural, influente entre os anos 60 e 70. Hoje, Todorov faz uma espécie de mea culpa e se pergunta, depois de tanta análise formal, o que foi feito da literatura. Ou, pelo menos, de uma de suas mais antigas e nobres funções: a de ajudar o leitor a compreender-se e ao mundo que o cerca. 

"A literatura desligou-se da vida", constata Todorov. E não apenas ela, pode-se dizer, mas também boa parte do cinema, das artes plásticas e da própria música distanciaram-se desse nosso mundo imperfeito e refugiaram-se no abstrato universo da forma. Deixaram de falar às pessoas. 

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 Em Literatura em Perigo, Todorov lembra dois casos interessantes. Um, de John Stuart Mill que, em sua Autobiografia narra a grave depressão de que foi vítima quando tinha 20 anos. Mill conta que a melancolia se instalou de maneira cada vez mais profunda e só começou a ceder e afinal foi derrotada pela leitura dos poemas de Wordsworth, que se tornaram para ele "fonte de alegria interior". 

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O segundo caso é o de Charlotte Delbo, jovem de 20 anos presa e deportada para um campo de concentração por ter ajudado na luta de resistência contra o invasor alemão. Sem acesso a livros, consegue alguns emprestados de sua vizinha de cela. E assim consegue atravessar seu tempo de prisão em companhia de personagens da Cartuxa de Parma, de Stendhal, e do Misantropo, de Molière.

 Conclusão: a literatura pode muito. Desde que não a esterilizem.

Não tenho aqui o livro em mãos. Pela lembrança, acho que Todorov se rebela tanto pelo caráter esotérico da própria literatura como da análise formal a que as obras foram submetidas naquele período. 

Algo de muito semelhante se passa com o cinema, essa arte em tese popular e que deveria dizer muito sobre a vida de quem se dispõe a entrar numa sala e ver um filme. E, sobretudo, àquele que recorre à crítica especializada em busca de informações sobre a obra. No entanto, muitas vezes essa  experiência parece se reduzir a um diálogo inócuo de estetas que vivem no mundo da Lua, como se não tivessem contato com as pessoas e as coisas. E então a arte cinematográfica parece reduzida a um inventário insosso de planos e contraplanos, movimentos de câmera, registros fotográficos e outros elementos do discurso técnico, quando não tecnocrático. 

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Há pouco surgiu um livro singelo, que relembra esse fato simples, que o cinema diz respeito à vida das pessoas e pode ajudá-la a discutir o sentido de sua existência, sobretudo em momentos difíceis. Sem se curvar em nenhum momento ao facilitário da auto-ajuda, Clube do Filme, de ....

(o texto se interrompe aqui). 

Não sei se o completei. Se publiquei, ou se ficou pela metade porque o editor não quis. Se fui fazer outra coisa, pensando em retornar a ele e nunca o fiz. Pouco importa. 

O tal do livro singelo - e dele eu também me lembro - é Clube do Filme, do canadense David Gilmour. Ele faz um acordo com o filho, estudante relapso. Trocar a educação formal pelo compromisso do garoto de ver três filmes por semana e debatê-los com o pai. Serão estímulos para discussão de grandes questões. O primeiro filme, visto e debatido, é Os Incompreendidos, de François Truffaut. Não por acaso, porque o filho de Gilmour, chamado Jesse, logo mostra pontos de correspondência entre a trajetória do protagonista de Truffaut, Antoine Doinel, vivido por Jean-Pierre Léaud, e ele próprio. 

Vendo o adolescente perdido representado por Léaud, e que era uma reflexão de Truffaut sobre a sua própria juventude, Jesse sentia-se estimulado a pensar sobre aquele momento de sua própria vida. Em que tinha, sob concordância do pai, realizado um desejo, o de se afastar da escola, mas que o colocava numa situação de não saber para onde seguir. Essa indagação - agora para onde vou? - é aquela do magnífico plano sequência final de Os Incompreendidos, quando o jovem Doinel chega à praia, desvia a cabeça e olha diretamente para a câmera - quer dizer, para nós, que estamos assistindo ao filme. 

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Exemplo de outros filmes que serviram de matéria-prima para essa singular forma de educação: A Doce Vida, de Federico Fellini, Instinto Selvagem, de Paul Verhoeven, O Iluminado, de Stanley Kubrick, e O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola. Nada mau como cardápio para uma educação informal, hein?

Gilmour é escritor e crítico de cinema. Apresentava um programa na TV sobre documentários. Não sei se é bom crítico. Pelo livro, parece uma espécie de crítico hoje raro, que leva em conta o calor, a carnalidade, a espessura de um filme, em vez de se entregar a exercícios de abstração e decomposição em elementos que, no final das contas, sem melhorar a compreensão da obra, acabam por despojá-la de seu caráter humano. Que é o que propriamente interessa, e estabelece um elo entre a obra e quem a vê. Afinal, o que importa não é apenas o que a obra "conta", e o modo como conta, mas essa misteriosa ligação que a torna próxima ao espectador. Tão próxima que, no melhor dos casos, passa a fazer parte da sua vida. 

"De te fabula narratur", a fábula fala de ti, escreve Horácio (65-8 a.C), poeta lírico e satírico da Roma Antiga.

(Work in progress. Continua)

Leia a série completa de  A arte da crítica

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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