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Opinião|A arte da crítica (24): o limite da crítica

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Há uma nota, ou um pequeno capítulo de O Autor no Cinema, que Jean-Claude Bernardet intitula de "O gosto, o amor pela obra e o crítico". 

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Do modo que foi lido por mim, esse pequeno texto fala dos limites da crítica. Transcrevo-o, antes de comentá-lo, porque é curto, denso e inspirador. 

"Em banca de doutorado, Jacques Derrida disse ao candidato que ele tinha demonstrado que Polyeucte, tragédia de Corneille, era construída em espiral. Mas que não tinha demonstrado que era uma boa peça. 

No início dos anos 1960, quando eu tinha uma coluna diária no Última Hora, uma amiga disse-me que meus melhores artigos eram sobre filmes ruins. 

O crítico (pelo menos eu) que escreve sobre um filme que ele ama, que o levou a uma intensa emoção, que o transformou a ponto de sentir que tem um antes e um depois, esse crítico nunca fica satisfeito com seu texto sobre a obra. O texto nunca alcança a obra. Nem a emoção. (grifos meus). Há uma vontade de ir além desse texto redutor, mas a obra sempre fica além. Se o crítico não se contiver, o texto corre o risco de se tornar opinativo, adjetivado. 

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Mas nessa limitação manifesta-se outro problema. Num livro que para mim foi formador, A realidade figurativa, Pierre Francastel defende a ideia de pensamento plástico, irredutível à linguagem verbal, assim como o pensamento musical é irredutível ao verbal. O verbal pode se aproximar dessas obras, contribuir para sua compreensão e enriquecer a emoção do observador/ouvinte, mas o verbal nunca dá plenamente conta da obra, não se apropria dela. 

O mesmo ocorre com os filmes." (p.97, reedição de 2018, Sesc).

Qual o sentido da observação de Derrida? A percepção da forma de uma obra, ou de um trecho dessa obra, não nos informa sobre sua força, qualidade ou a emoção que desperta. E por que o faria? 

No entanto, ao notarmos que determinada obra se estrutura em discurso indireto livre não significa um ganho de conhecimento sobre ela. Quando vemos um filme cortado em planos rápidos ou, ao contrário, em longos planos-sequência, isso em nada nos informa? Etc, etc. 

Passemos a outro ponto. 

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Por que motivo Bernardet coloca em itálico a expressão pensamento plástico? Provavelmente para destacar o quanto é surpreendente. Pensamento, para nós, liga-se ao verbal, ao logos. No entanto, o que se insinua, aqui, é que a pintura pensa. Ou melhor, o pintor pensa através da pintura. 

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Pensa o mundo, embora não use o verbo. É o que confusamente sentimos ao contemplar uma obra de arte. Não apenas sentimos determinadas emoções, mas somos conduzidos a uma série de ideias a respeito do que estamos vendo. Não são apenas reações subjetivas. Sentimos e intuímos também o que o artista sentiu, pensou e exprimiu o que pensou e sentiu através de sua arte. Leonardo, aliás, sempre dizia que a pintura era "cosa mentale". Coisa mental. A Mona Lisa é "cosa mentale". 

O mesmo se dá com a música, que Hegel chamava de a mais abstrata das artes. Lorenzo Mammì, um crítico extraordinário, batizou de A Fugitiva sua coletânea de artigos sobre música. "Música e linguagem verbal não se bicam", ele escreve na Introdução (p.9)..."A música nunca se põe no mesmo plano da linguagem verbal: está sempre acima ou abaixo dela". 

Não parece a transcrição quase literal das palavras de Bernardet a respeito da pintura (e, por extensão, do cinema)?

Isso significa que os críticos, de cinema num caso, de música ou artes plásticas no outro, enfrentam o mesmo problema. Ou seria melhor dizer, o mesmo desafio? Trabalham com palavras, mas sentem-nas insuficientes para dar conta de algo de outra ordem - os filmes, os quadros, as peças musicais. 

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Não ignoro que estas considerações extrapolam os limites da crítica cinematográfica e envolvem problemas filosóficos de outra ordem e outra grandeza. 

E mesmo questões do domínio científico. Merleau-Ponty o menciona no capítulo VIII de Signos, "Einstein e a crise da razão". O filósofo parte do positivismo, para o qual a ciência (mas também a ação política) teria acesso às leis segundo as quais natureza e sociedade são feitas". Natureza e sociedade existem à parte e cabe a nós compreendê-las através da linguagem de que dispomos. 

Merleau-Ponty entende que mesmo um revolucionário como Einstein era um espírito clássico que..."Nunca deixou de pensar que essa criação vai ao encontro de uma verdade depositada no mundo". Daí seu desencontro com a mecânica quântica: "Nunca pôde aderir à ideia de uma 'realidade' que, por si e em última análise, fosse um tecido probabilidades". Por conservar o ideal científico clássico, "e reivindicar para a física o valor não de uma expressão matemática e de uma linguagem, e sim o de uma notação direta do real" (pgs. 213-219). 

Percebo agora, à medida que escrevo, que essas inquietações se vinculam ao capítulo 2 desta Arte da crítica, chamado por mim de As Palavras e as Coisas, empréstimo do título do grande livro de Michel Foucault. 

Mas creio ter dado uma volta a mais na espiral. Pode haver aí um progresso da reflexão. Mas temo que uma excessiva preocupação em saber se as nossas palavras dão conta da obra pode nos levar a buscar essas obras como essências, ou "coisas-em-si". E que a impossibilidade de aceder a elas em sua, digamos, completude, nos desanime de nossa tarefa. 

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Pelo contrário, creio que a impossibilidade de "traduzir" uma obra, em nosso caso, um filme, em palavras, não nos desobriga de aproximarmo-nos dele o mais que pudermos. Qual será a boa distância?, seria uma pergunta subsidiária. 

De qualquer forma, a palavra é a nossa ferramenta humana, e a única de que dispomos. Talvez seja ela que organiza o nosso olhar, a nossa audição, os nossos sentidos, em suma. E, para ser abusivamente lacaniano, se este mundo humano de fato estiver estruturado em palavras, tanto o crítico quanto a obra estarão mergulhados no pudim linguístico pelo qual tentamos dar um pouco de sentido a ele. 

O que nos concede, entre obra e crítico, um campo comum, no qual podemos nos entender, ainda que através de limitações e equívocos. Para além deste mundo, o que há? O Real, diria o próprio Lacan. Mas esta é outra história. 

(Work in progress. Continua)

Leia a série completa de  A arte da crítica

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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